A gestão de Romeu Zema (Novo) teve mais recursos disponíveis e contou com a suspensão do pagamento da dívida com a União. Por outro lado, vai entregar o governo ainda mais endividado. Os dados, disponíveis no portal Transparência MG, apontam que a principal promessa de campanha do governador em 2018, o equilíbrio das contas públicas, não foi cumprida.
A dívida de Minas chega a R$173 bilhões, descontadas as amortizações e serviços. O maior crescimento nominal ocorreu com Zema no governo, em cerca de R$50,3 bilhões, ou seja, mais do que em quatro anos de governo Pimentel (PT), quando a dívida cresceu R$31,6 bi.
Tabela: / Brasil de Fato MG
A explicação é que a maior parte, a dívida com a União, foi suspensa graças a uma liminar obtida no final do governo Pimentel, em 2018. A suspensão do pagamento de cerca de R$ 40 bilhões aos cofres federais permitiu, a partir de 2021, pagar os vencimentos dos servidores em dia. Por outro lado, o serviço público teve os salários congelados.
“No futuro, essa dívida vai ter que ser paga e pouco importa se ela vai ser postergada para daqui seis, nove ou 30 anos. O que todo esse movimento permite é delongar o montante da dívida, transferir para governos futuros”, pontua o economista e auditor fiscal Marco Túlio da Silva, vice-presidente da Associação dos Funcionários Fiscais do Estado de Minas Gerais (Affemg).
Mais dinheiro em caixa
Além da suspensão de pagamentos, Zema contou com um crescimento das receitas. Se em quatro anos da gestão Pimentel (entre 2015 e 2018) o Estado arrecadou R$ 292,5 bilhões, nos últimos três anos e meio, a arrecadação total foi de cerca de R$ 392 bilhões (44% a mais que o antecessor).
Nesse aspecto, a gestão Zema foi beneficiada por três fatores. O primeiro foi o crescimento real de 3% nas receitas tributárias, puxadas pela inflação do combustível, da energia e de outros bens e serviços, fazendo aumentar a arrecadação de impostos como o ICMS (ampliação de R$ 16 bilhões entre 2018 e 2021).
Além disso, Minas recebeu R$ 8 bilhões a mais em transferências da União, enquanto, na gestão anterior, houve uma perda de 13%. Outro reforço veio do acordo firmado com a Vale pela reparação do crime cometido em Brumadinho. Desde a celebração do acordo, em 2021, até abril de 2022, foram incorporados ao orçamento estadual cerca de R$ 4,5 bi pagos pela mineradora.
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Até julho, o governo tinha em caixa R$ 37 bilhões, segundo levantamento feito pelo Sindicato dos Servidores da Tributação, Fiscalização e Arrecadação do Estado de Minas Gerais (Sinfazfisco-MG). Porém, o governador argumenta que o Estado tem um endividamento explosivo, que não há dinheiro para retomar o pagamento da dívida e que o único caminho para resolver o problema é a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) de Bolsonaro.
Para Hugo René, presidente do Sinfazfisco-MG, a argumentação do governo denota uma falta de compromisso com as contas públicas. “A dívida tem juros e ele deixa correr com dinheiro em caixa. É como um cidadão que deve o cartão de crédito ou cheque especial com juros exorbitantes e deixa o dinheiro parado na conta corrente”, compara.
Zema e Bolsonaro: “93% de desconto à União”
Embora o governo cite a dívida do Estado como justificativa para a falta de investimentos e a não valorização dos servidores, isso não o impediu de renunciar a receitas bilionárias.
Em 2020, Zema celebrou um acordo com o governo Bolsonaro (PL) abrindo mão de R$126 bilhões a que teria direito como compensação pelas perdas decorrentes da Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996).
Essa lei federal liberou empresas que exportam bens primários, como minério de ferro e produtos agrícolas, de pagarem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um dos tributos mais importantes para o financiamento dos estados.
Governadores calculam que as perdas causadas por essa lei chegariam a R$ 600 bilhões. Em 2016, uma decisão do Supremo Tribunal Federal determinou que o Tribunal de Contas da União deveria estabelecer regras para compensar os estados. Na época, um levantamento da Secretaria de Estado da Fazenda apontava que Minas teria direito a receber R$ 135 bilhões, isto é, mais do que o montante devido à União.
Porém, no acordo com o governo federal, o governo de Minas consentiu com uma compensação menor: R$ 8,7 bilhões, parcelados até 2037. Desse modo, o governo estadual abriu mão de 93% do total cobrado na Justiça.
“Se Minas concede 93% de desconto à União, esta, por sua vez, quer que o estado pague sua dívida integral. Ora, se houve uma negociação política no caso da Lei Kandir, também poderia haver uma negociação política para rever a dívida com a União”, defende o economista Marco Túlio Silva.
Governo não enfrenta a dívida porque quer aderir ao RRF
“A alegada crise e a necessidade de adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) configuram uma estratégia para transferir a responsabilidade dos políticos para os servidores e para o cidadão que necessita do serviço público”, avalia Felipe Rodrigues, diretor de finanças do Sindicato dos Servidores da Justiça de 2ª Instância do Estado de Minas Gerais (Sinjus).
O Regime, criado pelo governo federal em 2017, permitirá que o pagamento da dívida seja suspenso no primeiro ano e retomado nos nove seguintes, de forma parcelada, aumentando o valor da parcela gradativamente. Em troca, Minas terá que desistir de ações judiciais que questionam a dívida com a União.
Além disso, a administração financeira do Estado será submetida a um conselho supervisor, composto por um indicado do Tribunal de Contas da União, um do Ministério da Economia e outro do governo estadual. Investimentos serão restringidos e salários e as carreiras dos servidores serão congelados por quase uma década.
Em 2017, o Rio de Janeiro foi o primeiro estado a aderir ao RRF. Três anos depois, a dívida pública fluminense disparou. No início, correspondia a 234% da receita corrente; em 2020, a dívida saltou para 319% da receita corrente.
Em Minas, a tentativa de adesão ao RRF remonta a 2019, isto é, três anos antes de expirar o prazo da liminar que suspendeu o pagamento da dívida. Na época, o governador encaminhou à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) um projeto de lei (PL 1202) prevendo o ingresso no Regime.
Como a matéria não foi apreciada no Plenário, em junho, o governador recorreu ao STF, pedindo a adesão sem passar pelo Legislativo. No mês de julho, duas decisões liminares do Supremo, sendo uma do ministro Luís Roberto Barroso e outra do ministro Nunes Marques, permitiram ao governo dar seguimento às negociações com o Ministério da Economia sem a anuência dos deputados estaduais.
Especialistas defendem revisão técnica da dívida com a União
Nas decisões, ambos os ministros repetiram o argumento do governo, segundo o qual a ALMG se omitiu no tocante à questão da dívida. Porém, em junho, a Assembleia havia aprovado - e o governador sancionado - a Lei 24.185/2022, autorizando o Poder Executivo a celebrar o contrato de confissão e refinanciamento de dívidas, em condições mais vantajosas do que as atuais: prazo de 360 meses, com eliminação de encargos, de correção e de juros de 4%, somados à inflação do período, tendo como limite máximo a Selic.
Dívida precisa ser questionada
Especialistas defendem que é necessário fazer uma revisão técnica (auditoria) e política da dívida com a União. Segundo ele, há muitas evidências de que houve cobranças indevidas e parte considerável já foi paga.
Para se ter uma ideia, dados do Tesouro Nacional mostram que, entre 1998 e 2019, o Estado quitou R$ 45,8 bilhões em juros e amortizações, mas o estoque da dívida mineira saltou de R$ 14 bilhões para R$ 93 bilhões.
O economista Marco Túlio da Silva cita como fatores para esse crescimento as elevadas taxas de juros e a cobrança de juros sobre juros, bem como contratos de refinanciamento, desde os anos 90, com indexação pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), um índice superior à inflação oficial, influenciado pelas variações da taxa de câmbio.
“Além disso, um terço da dívida decorre do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes), no qual o estado assumiu as dívidas dos bancos Bemge, Credireal e Minas Caixa, antes de privatizá-los ou liquidá-los. E os ativos desses bancos representavam um valor menor do que a dívida que o Estado assumiu. Foi uma imposição do governo federal que gerou endividamento”, acrescenta.
Outro lado
A reportagem fez contato com a assessoria do governo de Minas Gerais para comentar as questões abordadas e aguarda resposta.
Brasil de Fato MG, por Wallace Oliveira e Bruno Carvalho