Em 11 de setembro de 2020 chegava a estados, municípios e ao Distrito Federal o primeiro lote de R$ 3 bilhões garantidos pela Lei Aldir Blanc, que fora aprovada em maio daquele ano. Finalmente, artistas e espaços culturais começariam a receber auxílio emergencial específico para um dos setores da economia mais afetados pelas restrições da pandemia da covid-19.
Cerca de um ano e meio depois, trabalhadores do setor cultural voltaram a comemorar uma decisão do Legislativo em socorro ao segmento com a aprovação, na última terça-feira (15), da Lei Paulo Gustavo pelo Senado Federal, de autoria do senador Paulo Rocha (PT-PA). Agora, a liberação de R$ 3,8 bilhões de recursos controlados pelo governo, como determina o texto, depende apenas da sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL).
“O Senado está respondendo a esse momento que o nosso país está vivendo, e o setor cultural tem um papel fundamental na economia”, disse Rocha após a confirmação da aprovação unânime no Plenário, fato que foi exaltado por seus colegas e pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que estava presente.
A parlamentar foi relatora da Lei Aldir Blanc, de 2020, e é autora da sua nova versão, apelidada de Lei Aldir Blanc 2, cuja votação está marcada para a semana que vem, também sob forte expectativa. Isso porque o projeto de lei institui uma política permanente de fomento à cultura, com repasses anuais de R$ 3 bilhões, o que resultaria na aplicação de R$ 6,8 bilhões no próximo biênio.
“Houve um acordo na Câmara para que as duas leis não sejam vetadas. Esperamos que o governo cumpra. Aí nós teremos emergencialmente a Paulo Gustavo em 2022 e, a partir de 2023, a Lei Aldir Blanc perenemente para a cultura brasileira”, vislumbra Jandira.
No caso da Lei Aldir Blanc 2 (PL 1518/21), a expectativa da deputada é criar um sistema ainda mais ágil da primeira etapa, que durou até dezembro de 2021 após ser prorrogada. Ela alega que a experiência ajudou a amadurecer uma proposta que supera etapas burocráticas e despreparo das gestões locais, que tiveram que correr para atualizar cadástros, abrir chamadas e editais. “Mesmo assim, só voltaram recursos de 4% dos 4700 municípios beneficiados, e de 7% dos estados”, aponta.
A deputada Fernanda Melchiona (Psol-RS), coautora do PL, faz coro à urgência da implementação de uma política permanente para o setor também para abrir novas perspectivas para o futuro da cultura nacional: “Um país do tamanho do Brasil e com a imensa produção cultural que tem, deveria ter um olhar muito mais apurado para a cultura”, comenta.
Governo faz “jogo duro” e “torce contra”
As medidas podem até trazer alívio no futuro, mas não foram concebidas sem sofrimento pelos cerca de 5 milhões de trabalhadores do setor, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) de 2020. Desde que ascendeu ao poder, Bolsonaro verbaliza e coloca em prática a repulsa que ele e a ala ideológica do seu governo nutrem pela classe artística.
A Secretaria Especial do Cultura (SeCult), que herdou as atribuições do extinto Ministério da Cultura, tem patinado na aplicação das leis já existentes. É também acusada de aplicar um desmonte proposital de órgãos ligados a ela, como a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a Fundação Palmares.
Em março de 2021, a SeCult, já sob comando do ator Mario Frias, chegou a vetar recursos da Lei Rouanet em cidades que tivessem imposto lockdown e, recentemente, tentou alterar a Lei Paulo Gustavo para manter a priorização do destino das verbas a critério da secretaria. A alteração foi rejeitada no Senado, que também não acatou a exclusão do uso da sigla LGBTQIA+.
“O Mario Frias fez campanhas horrorosas para não aprovarem a Lei Aldir Blanc, assim como fez agora para não aprovar a Paulo Gustavo e a Aldir Blanc 2”, opina Cintia de Almeida, gestora e produtora cultural.
Ao longo da sua carreira, Cintia já realizou diversos projetos culturais e artísticos, grande parte deles com recursos captados pela Lei Rouanet. Ela reconhece que a lei, transformada em alvo predileto da direita, tem problemas a serem corrigidos, mas rejeita a postura da Secretaria em dificultar a vida dos postulantes e a sistemática retenção de verbas de projetos já aprovados.
“O texto da Lei Rouanet diz que são 90 dias para esses projetos serem aprovados, só que isso não acontece desde 2019. Ele entra lá e fica lá até resolverem dar um destino para ele, sem critérios claros”, aponta Cintia que também participa da da associação de trabalhadores da cultura Sou 1 de 11 Milhões: “Tem gente que levou um ano e meio para ter o recurso transferido e só conseguiu porque o TCU [Tribunal de Contas da União] começou a questionar o processo”.
Sem conseguirem viabilizar suas iniciativas, muitos artistas resolveram trocar de profissão ou foram empurrados para bicos informais. “Eu mesma quando me vi numa situação de que acabou, não tem mais recurso e nem de onde tirar, fiz bolo e brigadeiro para sobreviver porque se não ficaria sem dinheiro para comprar comida”, relata.
Novas leis usarão recursos de fundos setoriais, principalmente
A Lei Paulo Gustavo homenageia o ator e humorista que morreu em 4 de maio passado, aos 42 anos de idade, vítima da covid-19.
No texto, estipula-se que a maior parte da verba (R$ 2,79 bilhões), serão destinados a ações do setor audiovisual, e R$ 1,06 bilhão deverá ser destinado para ações emergenciais variadas no setor cultural. Eles serão provenientes principalmente das verbas excedentes do Fundo Setorial do Audiovisual e do Fundo Nacional de Cultura (FNC).
“Como o governo federal não aplicou esse dinheiro, nós estamos passando para os estados e municípios aplicarem. E esse dinheiro é apenas o superávit deste fundo, portanto não mexe com o Teto de Gastos e nem com a Lei de Responsabilidade Fiscal”, explica Paulo Rocha.
A deputada Melchiona afirma que, além dos esforços para censurar as produções consideradas pela ala ideológica impróprias ou inconvenientes, o governo federal também “cortou o orçamento pela metade como uma estratégia deliberada para sufocar o setor”.
Já segundo Jandira, a Secretaria Especial de Cultura faz de tudo para desconstruir as iniciativas tomadas no passado, sem grande preocupação com repor com novas políticas. “Veja que, em 2021, o orçamento discricionário para cultura foi de apenas R$ 23 milhões para o Brasil. Isso é inacreditável, a Cultura não é nada para esse governo. Aliás, ela é sim: inimiga desse governo”, ataca.
"Toda essa crise nos obrigou a criar novas alternativas de sobrevivência até mesmo dentro do cenário cultural, também ampliou nossa visão de mercado, empreendedorismo e economia criativa", comenta Cintia, que faz menção a alternativas de arrecadação, como campanhas de financiamento coletivo e ações de marketing nas redes sociais.
"Ficou claro que não podemos depender apenas do poder público, de leis de incetivo e muito menos desse governo", encerra.
Alex Mirkhan, Brasil de Fato (DF)