Há anos grupos que lutam contra a violência policial exigem mudanças em meio a crimes com comprovada e presumida participação de funcionários públicos que deveriam garantir a segurança, e não humilhar, agredir e matar. Em meio às manifestações que tomaram o país no último mês, o uso desproporcional da força de policiais de vários estados reaqueceu o debate. Diversos movimentos sociais centrados em outras pautas passaram a colocar como uma das prioridades para o país a desmilitarização das polícias estaduais.
As imagens de policiais atirando gás e balas de borracha contra pessoas paradas, jornalistas trabalhando e manifestantes desarmados foi um dos motores que impulsionaram a multiplicação de ativistas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mas o problema é antigo e tem causado danos irreparáveis. Em maio do ano passado, a Dinamarca chegou a recomendar que o Brasil extinguisse a Polícia Militar no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que exigiu mais esforços do país para acabar com grupos de extermínio formados por policiais.
A questão vai muito além de uma mudança de nome, de roupa e da forma de chamar o policial. A rígida estrutura a que são submetidos os PMs tem consequências negativas para eles mesmos e para o resto da sociedade, afirmam especialistas.
Proibidos de reivindicar melhores salários e de se organizarem em sindicatos, são impedidos de acessar garantias trabalhistas, além de terem seus direitos humanos constantemente desrespeitados com amparo em códigos de conduta. “Segundo uma pesquisa que fizemos recentemente, muitos regulamentos disciplinares são inconstitucionais e extremamente autoritários. É difícil esperar uma polícia que trate o cidadão como tal quando ele foi tratado no quartel de modo autoritário”, afirma o sociólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ignácio Cano. Para ele, a manutenção dessas normas interessa aos oficiais militares, e não aos soldados de patente inferior. “Os praças não têm nada contra a desmilitarização, até porque acham que vão receber melhor como servidores civis do que como servidores militares”, afirma.
O professor e cientista político Guaracy Mingardi lembra que a polícia como a conhecemos hoje é fruto de uma exigência dos militares que comandaram o país depois de um golpe entre 1964 e 1985 para aumentar seu controle. Antes disso, afirma o professor, as diversas forças de segurança civil não eram “nem melhores nem piores”, mas o que fica evidente é que pouco mudaram desde a redemocratização.
“O problema da força pública antes disso é que ela era, até mil novecentos e trinta e pouco, uma espécie de Exército. Mesmo depois, entre os anos 1930 e 1940. Só aos poucos foi entrando policiamento, porque a maior parte ficava aquartelada. A ideia de desaquartelar é dos anos 1980”, explica. “A saúde pública melhorou, a educação pode estar uma porcaria, mas melhorou. Pelo menos atende a todo mundo. Mas a segurança, que nunca foi uma maravilha, não melhorou”, aponta Mingardi.
Para o professor, é fundamental a extinção da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Exército que coordena as polícias militares de todo o país e da Justiça Militar. “Para os oficiais, é um privilégio, ele é sempre bem tratado. Já para os soldados é ruim. Tem muitas coisas que caem lá que têm peso militar; o sujeito é julgado como se estivesse no exército.”
A lógica de submissão a um código de conduta próprio seria a responsável pela visão do cidadão comum como um inimigo, a quem desmandos sofridos poderiam ser transmitidos sem consequências. “Há um ditado entre os PMs que é: 'Paisano é bom, mas tem muito'”, conta Mingardi. “Isso explicita que eles se veem de forma diferente do resto da sociedade”, argumenta.
“Na década de 1980, já tivemos coronéis falando assim: 'o suspeito típico é mulato, tem entre 18 e 22 anos, se veste de tal maneira'. Ou seja, caracteriza o sujeito. De qualquer forma, é mais fácil um civil se ver como parte da sociedade do que o militar. Uma parte da sociedade também vê assim, mas, quem passa, quem atua nisso é a polícia”, diz.
Para a diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos, Lucia Nader, a polícia não recebe um treinamento diferente para brancos e negros, estes últimos alvos principais da violência policial. A atuação diferenciada seria fruto de uma “cultura de discriminação” disseminada pela sociedade e amparada por outras disparidades sociais. “Se hoje um guarda militar me para e viola meus direitos, eu sei muito bem o que fazer, a quem recorrer e como denunciar. E ele vai pensar duas vezes antes de fazer isso. Se ele fizer no Jardim Ângela (zona sul de São Paulo), a situação é um pouco diferente. É muito uma coisa de como a população tem acesso à Justiça, é ciente dos seus direitos e tem mecanismos confiáveis de denúncia”, argumenta.
Lucia acredita que a Polícia Militar é uma das poucas instituições que não passaram por um processo de redemocratização após a saída dos militares do poder. “Sem dúvida, tem muitos problemas na polícia e um deles é a questão da referência à ditadura, que vai desde o nome até uma série de estruturas e ligações com o Exército, mas na nossa opinião é mais profundo do que isso”, diz, em consonância com os outros especialistas.
Para eles, é mais importante mudar os preceitos e romper com estruturas formais da Polícia Militar do que desmilitarizá-los. “Podemos ter uma polícia desmilitarizada e continuar tendo uma polícia altamente violenta, com altas taxas de letalidade, como a polícia é hoje”, afirma Lucia. Ela sintetiza as mudança em cinco ações: valorização dos profissionais, fortalecimento da ação investigativa, responsabilização pelos abusos cometidos, recolocação da polícia como serviço público e maior controle sobre o uso da força. “Como e quando ela faz uso da força tem que ser regulamentado e de uma maneira restrita e proporcional à ameaça apresentada”, afirma.