Por Ana Maria Jara Gomes*
Há momentos em que, contra toda a lógica, quanto mais informação é produzida e difundida sobre um determinado evento, menos brilha a faixa de cinza que o envolve e mais escuras são as áreas sombrias com que foi inicialmente apresentado.
Não é acidental. Em tempos de pensamento fraco, dogmatismo e domínio da pós-verdade, as coisas são apenas o que parecem, as emoções substituem a racionalidade e as únicas cores claramente perceptíveis são as das bandeiras.
A história de uma guerra, por exemplo, é construída antes do primeiro tiro e o desenvolvimento das operações de guerra deve se adequar às demandas de um roteiro pré-estabelecido e dos atores escolhidos para interpretá-lo.
Aceitando a diferente densidade moral de vítimas e algozes, nem sempre é fácil atribuir corretamente o papel convencional de vencedores, nem parece aceitável admitir que todas as vítimas são vitoriosas na mesma medida.
Objetificação das mulheres na guerra
Um olhar superficial sobre a extensa literatura sobre as guerras recentes sustenta a tese da posição específica das mulheres nos cenários de guerra, sua reificação, sua instrumentalização selvagem e sua sistemática omissão desconsiderada na corte e na análise pós-conflito.
As mulheres que hoje estão envolvidas na invasão russa da Ucrânia eram, há poucos dias, jornalistas, professoras, cantoras, funcionárias públicas, ministras, dançarinas, donas de casa, youtubers, mais ou menos crentes. Eram leitoras, feministas, cinéfilas, veganas; algumas cosmopolitas, outras hippies, rurais, urbanas ou punks, pobres ou ricas, com diferentes orientações sexuais. Muitas eram alunas que fazem perguntas ou prestam atenção em silêncio, mais ou menos ingênuas, politicamente conservadoras ou progressistas.
Eram mulheres com uma identidade determinada e plena, composta por muitos elementos vitais, projetos e sonhos realizados ou em andamento que foram temporariamente suspensos e quem sabe se perdidos total e irremediavelmente. Cada identidade individual nos distancia da história coletiva, mas a guerra concede a ostentação da simplificação que nos permite distinguir entre as mulheres que saem da Ucrânia e as mulheres que ficam.
Enquanto o que foi alcançado deve ser abandonado, o novo abre caminho: medo, trauma, perda, em alguns casos será horror na forma de estupro continuado, prostituição forçada ou abuso de todos os tipos. O tempo que passa elimina a possibilidade de que voltem ao que eram.
As mulheres que partem para salvar seus filhos logo perceberão o que significa ser refugiada na Europa. Em muitos casos, a guerra matará outros: seus filhos, seus maridos, suas mães e seus pais. Os que ficam, já privados de seus empregos, suas casas, seus amigos e familiares, veem a tortura e a morte se aproximando.
Nem negociadoras, nem mediadoras, nem signatárias de nada
Vítimas aparecem diante de nossos olhos, algumas das quais serão submetidas a sofrimentos específicos de gênero, como aconteceu em tantos conflitos no passado. Outras histórias e documentos devem ter um lugar onde as vozes das mulheres não sejam diluídas na esfera supostamente masculina do político-jurídico. Ninguém ficou impressionado com a virtual ausência de mulheres nas mesas de negociação antes do conflito, em todo aquele profuso “canal diplomático”, nas atuais tentativas de negociar tréguas, por qualquer uma das partes? Nem negociadores, nem mediadores, nem signatários.
O pós-guerra, e as dificuldades que ele acarreta, talvez nos permitam ver os sobreviventes sem reduzi-los a vítimas, construindo no centro da destruição. No Kosovo, onde também foram ignoradas as resoluções da ONU sobre mulheres, paz e segurança , existem grupos de mulheres que lutam contra a supressão das vozes das mulheres. Uma referência altamente relevante é a Women’s Peace Coalition, que atravessa todas as barreiras e divisões estaduais, nacionais e étnicas.
As mulheres que fazem parte dela, albanesas e sérvias kosovares, fazem algo que ninguém mais em seus países conseguiu fazer até agora: elas trabalham juntas. Mesmo na aldeia kosovar que sofreu um dos massacres mais horrendos em 1999, em que quase todos os homens foram mortos, e num país onde menos de 10% das mulheres são o principal sustento da família, uma mulher deixou de vender marinadas em feiras para se tornar a chefe de uma próspera cooperativa agrícola, gerida inteiramente por mulheres.
É desanimador que as mulheres ucranianas de hoje possam repetir o que Hannah Arendt escreveu em 1943:
“Perdemos nossa casa, ou seja, o cotidiano da nossa vida familiar. Perdemos nossa ocupação, ou seja, a confiança para sermos úteis neste mundo. Perdemos nossa linguagem, ou seja, a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos, a simples expressão dos sentimentos… Tornamo-nos testemunhas e vítimas de terrores piores que a morte”.
Tudo isso, em meio ao silêncio jurídico e ao desrespeito político pela situação –uma verdade de fato– das mulheres na guerra. Infelizmente, a cada dia estamos mais perto de confirmar a própria suspeita de Arendt de que “o compromisso com a verdade é de fato uma atitude antipolítica”.
Talvez por isso seja urgente dirigir as nossas forças para evitar o jogo das emoções, perante uma reflexão rigorosa e exigente sobre a situação das mulheres no teatro de guerra. Talvez por isso tenhamos que intensificar a luta contra o engano e a mentira na política. Talvez por isso seja urgente combater a simplicidade da propaganda na guerra, apostando efetivamente numa imprensa livre e incorrupta. Talvez por isso, e especialmente por isso, seja necessário um firme compromisso ético contra a expansão do autoengano.
*Ana Maria Jara Gomes é professora de Filosofia do Direito, Universidade de Jaén, Traduzido por Cezar Xavier. Originalmente publicado no site Vermelho