Por RUDOLFO LAGO(*) e EDSON SARDINHA(**), no Congresso em Foco
Nunca foi tão fácil e tão pouco arriscado desviar dinheiro público na história do país. Essa é a consequência grave da manutenção do orçamento secreto, na avaliação do diretor executivo da seção brasileira da Transparência Internacional, Bruno Brandão. “O orçamento secreto é o maior esquema de institucionalização da corrupção na história brasileira”, afirma ele, com segurança, nesta entrevista ao Congresso em Foco.
E é a partir daí que se depreende que nunca antes foi tão fácil desviar dinheiro público. Porque, para aqueles que têm acesso a esses recursos públicos, o orçamento secreto elimina de forma quase total os riscos do desvio. “Tiraram os mecanismos tradicionais de desvio de dinheiro para criar um mecanismo de assalto aos cofres públicos com um verniz de legalidade, um teatro de institucionalidade, que reduz os riscos dos agentes, mas que é um a apropriação indébita, uma apropriação corrupta”, avalia Brandão.
É por isso que, para o diretor da Transparência Internacional, será um grande risco para o novo governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva negociar com o Congresso a manutenção do orçamento secreto nos mesmos termos e da mesma forma como ele vem sendo executado. “Trata-se de um mecanismo de impunidade”, afirma.
Numa comparação com os graves esquemas anteriores de corrupção do país – o mensalão e o petrolão –, Bruno Brandão explica que, enquanto eles mantinham aspectos dos mecanismos tradicionais de corrupção pública, tudo isso sofisticou-se no orçamento secreto. Nos dois casos, o que havia eram fraudes em contratos de licitação de grandes projetos, com desvios de percentuais em processos que conseguiam ser alcançados pelas ferramentas de fiscalização: tribunais de contas, Ministério Público, Polícia Federal, etc.
“Tanto o mensalão quanto o petrolão foram instrumentos de macrocorrupção, mas foram diretamente mecanismos de corrupção, de desvio de dinheiro público de estatais, de fraudes em licitações para financiamento de apoio político e também para enriquecimento ilícito de agentes públicos e privados. Me parece que as coisas foram se tornando mais graves”.
Mecanismo de impunidade
Outro aspecto que Bruno Brandão chama a atenção é que não há no orçamento secreto um mecanismo exatamente de barganha política. “Se nós pegássemos o modelo do mensalão, ele foi um mecanismo corrupto para comprar votos no Congresso e garantir a governabilidade. O orçamento secreto não é um pacto de governabilidade, não é um mecanismo de governabilidade. É um mecanismo de impunidade. Porque não existe um projeto de governo, uma visão de país do governo Bolsonaro que estaria sendo barganhado para a aprovação de projetos. Na verdade, é uma barganha por impunidade”, acusa ele.
Nesse sentido, Bruno Brandão confia que o Supremo Tribunal Federal (STF) vá acabar por considerar inconstitucional o modelo. “O que nós achávamos que seria uma boa saída para essa situação é a atuação do poder Judiciário, do Supremo Tribunal Federal”, considera ele. “Com o horizonte de um novo governo que, ainda que com problemas, demonstrou no seu passado um respeito às instituições democráticas muito superior ao governo atual, talvez o Supremo possa exercer o seu papel intervindo nessa situação para abolir essa prática obscena e claramente inconstitucional do orçamento secreto”.
Pulverização da corrupção
Um dos aspectos que dificulta a fiscalização da corrupção que se envolve no orçamento secreto é que ele trabalha com a total pulverização dos recursos públicos. São centenas, talvez milhares, de alocações de recursos em pequenos municípios, boa parte deles justamente aqueles com menor capacidade de fiscalização própria da aplicação. É na soma desse enorme varejo de recursos públicos que o desvio acontece.
“Enquanto o mensalão ou o petrolão eram esquemas que desviavam recursos de grandes contratos da administração pública, das estatais, de grandes obras e outras contratações, esse agora é um assalto direto ao orçamento público, que o que faz é uma pulverização na mesma ou em maior escala que os anteriores, mas de forma pulverizada”, explica Bruno Brandão. “Fazendo jorrar recursos federais para pequenos projetos e contratações, mas em um número imenso de localidades espalhadas pelas regiões mais desassistidas do país e com menor capacidade institucional de fazer o controle da alocação e da execução desses recursos. O que se fez foi jogar gasolina na fogueira. Já existia grande corrupção nos municípios, mas agora com um volume de recursos nunca antes experimentado. Nunca se viu tanto recurso federal indo para essas municipalidades sem qualquer controle”, considera o diretor da Transparência Internacional.
“Sai de algum lugar”
O dinheiro que se perde nessa pulverização de recursos públicos sai de algum lugar. Ou seja, não apenas se perde em milhares de destinações inúteis. Mas deixa de financiar outros grandes projetos importantes.
Um dos projetos que perdeu, por exemplo, dinheiro para financiar o orçamento secreto foi um projeto de combate ao câncer. O câncer é uma das doenças de tratamento mais caro. E, por essa razão, são diversos os seus pacientes que acabam tendo de recorrer ao Sistema Único de Saúde. Enquanto diversos deputados agraciaram seus pequenos municípios com tratores – ou nem isso – o tratamento de câncer na rede pública de saúde perdeu dinheiro.
Democracia desigual
“O terceiro impacto, talvez o mais grave, é o impacto sobre a própria democracia brasileira na deturpação das condições de competição eleitoral”, analisa Bruno Brandão. “Porque alguns políticos – e normalmente a classe mais corrupta e fisológica – tiveram acesso desigual e secreto a recursos milionários que os beneficiaram enormemente na competição eleitoral”.
Bruno Brandão exemplifica com o caso do próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tido como o dono da chave do orçamento secreto, aquele que define para quem irão as verbas. “Arhtur Lira quase dobrou seu número de votos das eleições anteriores. Teve acesso a meio bilhão de reais para seus interesses políticos”, observa.
Desmanche da fiscalização
“Seria uma piada se não fosse uma tragédia essas falas de que não houve corrupção”, acusa Bruno Brandão. Muito ao contrário de ter sido um governo menos corrupto, na avaliação do diretor da Transparência Internacional o que o governo Jair Bolsonaro fez foi procurar desmanchar os mecanismos de fiscalização que o país levou décadas para construir.
“O mais grave foi a destruição da capacidade do país de confrontar a corrupção. E com essa destruição dos mecanismos de combate à corrupção também se destruíram pilares do próprio sistema democrático. Do sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira”, diz Bruno Brandão.
Na avaliação de Brandão, Bolsonaro tentou destruir todos os três pilares do sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira: o pilar de responsabilização jurídica, legal; o pilar de responsabilização política, e o pilar de responsabilização social.
“Ao interferir nas instituições de controle e neutralizar a Procuradoria Geral da República, ele desmontou o pilar de controle jurídico, controle legal dos atos do governo e de tantas autoridades”, principia o diretor da Transparência Internacional. “Ao comprar o Congresso Nacional, garantiu a blindagem contra processos de impeachment que dormiram na gaveta de Arthur Lira, mais de 140 pedidos de impeachment e destruiu o pilar de responsabilização política”, continua. “Ao reduzir o espaço cívico, ao promover retrocessos sem precedentes na transparência, a decretação de sigilos abusivos, a destruição dos espaços de participação institucionalizados, ao atacar sistematicamente a imprensa investigativa, as organizações da sociedade representativa, o ativismo, ele tentou neutralizar também o pilar de controle social”, conclui.