Pela primeira vez desde que foi criada, em 1979, a Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar uma denúncia por trabalho semelhante à escravidão. E o Brasil estará no banco dos réus, acusado de omissão e negligência na apuração e responsabilização de um caso de violação dos direitos humanos. Os supostos crimes foram identificados em uma propriedade particular no Pará, a Fazenda Brasil Verde, desde a década de 1980.
A audiência pública será nos próximos dias 18 e 19, em San José, na Costa Rica, onde funciona a sede da Corte Interamericana – instituição judiciária responsável por aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos entre os estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). A sentença final só deverá ser divulgada dentro de alguns meses – provavelmente no segundo semestre deste ano.
A denúncia foi apresentada em 1998 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).
As duas organizações não-governamentais argumentam que o Estado brasileiro não adotou as providências necessárias para evitar e, posteriormente, punir os donos da fazenda e outras pessoas acusadas de submeter um grande número de trabalhadores à condições degradantes de trabalho, parecidas com a escravidão, entre os anos 1980 e 2000.
De acordo com a CPT, nas seis ocasiões em que fiscais estiveram na propriedade para verificar as condições dos trabalhadores, 340 pessoas foram resgatadas. Os nomes de 26 supostas vítimas são citados na resolução da presidência da Corte sobre a audiência deste mês. Além disso, a própria OEA, a partir das informações prestadas pelas denunciantes, fala “em um contexto no qual dezenas de milhares de trabalhadores foram submetidos ao trabalho escravo”. A maioria das vítimas é do sexo masculino, negra, tem entre 15 e 40 anos e morava em cidades pobres, marcadas pela falta de oportunidades de trabalho.
Entre os documentos anexados à denúncia, há testemunhos de trabalhadores que relataram ameaças de morte contra quem fugisse; provas de não pagamento de salários e de cobrança de dívidas contraídas desde o transporte das cidades de origem das vítimas até a compra de produtos de uso pessoal que só podiam ser adquiridos na própria fazenda; informações sobre comida e condições de saúde indignas, entre outros problemas.
Ao submeter o caso à apreciação da Corte, a Comissão Interamericana apontou que o Estado brasileiro é responsável pela situação de trabalho forçado e servidão por dívidas e pela situação de impunidade – fatos que violam a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A comissão recomendou que o Brasil repare adequadamente as vítimas, investigue adequadamente as denúncias de trabalho escravo e suspeitas de desaparecimentos, apure a suposta omissão de funcionários públicos, entre outras medidas.
A CPT e a Cejil querem que o governo brasileiro proponha uma mudança constitucional que torne a submissão de alguém ao trabalho análogo à escravidão um crime imprescritível, o que permitiria que os responsáveis fossem julgados a qualquer tempo.
Segundo o coordenador da Campanha Nacional da CPT contra o trabalho escravo, frei Xavier Plassat, a expectativa das organizações sociais é que a Corte Interamericana aceite a denúncia de que o Brasil se omitiu na apuração do caso e também na implementação de políticas públicas que impeçam a reincidência e, principalmente, possibilitem que populações mais suscetíveis ao assédio de aliciadores superem o “círculo vicioso” do trabalho escravo.
“Só em 1995, sob pressão internacional, o Brasil reconheceu a existência do trabalho escravo no país e criou o Grupo Móvel de Fiscalização (do Ministério do Trabalho) e o Plano Nacional de Erradicação”, lembra Frei Xavier.
De acordo com o coordenador da CPT, entre 1996 e 2002, as autoridades brasileiras intensificaram as autuações (principalmente no meio rural) e aprimoraram os mecanismos de combate ao trabalho análogo à escravidão, o que resultou na libertação de 6 mil pessoas. A partir de 2002, mais 45 mil pessoas foram libertados, revelando a dimensão do problema.
Em parecer pericial, o especialista indicado pela Comissão Interamericana, César Rodríguez Garavito, lembra que, perante o direito internacional, os Estados nacionais têm “obrigações de prevenir e investigar práticas de trabalho forçado por particulares”. Para a comissão, o caso “oferece uma oportunidade para que a Corte Interamericana desenvolva jurisprudência sobre o trabalho forçado e as formas contemporâneas de escravidão”.
Procuradas nessa quinta-feira (4), a Secretaria de Direitos Humanos e a Advocacia-Geral da União (AGU) ainda não se pronunciaram sobre o caso.
Fonte: Rede Brasil Atual