A primeira vez que tive coragem e chamei a polícia, a ocorrência foi atendida por dois policiais homens. Não trataram como um possível caso de violência doméstica, mas como um “desentendimento de casal”. E foram embora sem sequer fazer um registro. Na mesma casa tive que lidar com a ira por ter feito o chamado.
Outra vez, muito tempo depois, diante de situações que envolviam ser seguida, obrigada a atender ao telefone e toda a sorte de ações para provocar meu desequilíbrio emocional, novamente tomei coragem e pedi ajuda. Novamente, a situação estava sendo tratada como mais um “desentendimento”, não como uma violência. Foi a interferência de uma amiga que deu o rumo ao que era sim uma violência doméstica. Poucas vezes senti tanta vergonha na vida. Embora fosse eu a vítima, a vergonha me dominava e só não desisti porque não estava sozinha dessa vez.
Entre as duas situações, muita coisa aconteceu, mas sempre entre quatro paredes, afinal “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, não é? É como aquela história sobre o cravo que brigou com a rosa que saiu despedaçada. Mas o cravo também saiu ferido, o que ensina simbolicamente que não houve situação de violência, nem vítima, afinal cada um teve uma consequência da briga…
Atrevi-me a escrever essas coisas em memória da Tatiana, assassinada, jogada 4º andar do prédio, de acordo com as primeiras investigações, pelo marido no dia 22 de julho deste ano, em Guarapuava, Paraná.
É preciso falar das violências, para que não se naturalizem em nosso meio. Não é natural, não importa se o cravo saiu ferido, ele não é a vítima da violência, ele é o agressor. Em briga de marido e mulher se coloca a colher, o garfo e todo o faqueiro se necessário, porque onde há violência o Estado tem que atuar, deixa de ser um problema privado.
Quem teve a prática de jogar sua companheira do 4º andar de um prédio não tomou a decisão de fazer uma violência somente naquele momento. Quem bate a primeira vez baterá novamente. E a sequência de uma agressão é sempre a de se desculpar, responsabilizar quem apanhou e a vida segue.
Os sinais da violência não ficam totalmente escondidos. Quem vive situações assim deixa os pedaços da dor pelo caminho para serem encontrados. Às vezes, até sabemos que os pedaços estão perto, mas a naturalização da violência como algo da vida privada e, por isso, como algo em que “não se mete a colher”, justifica não ajudar. É como se o problema não fosse da sociedade. Mas é! A Organização Mundial da Saúde divulgou um relatório e os dados mostram que o Brasil ocupa a 7ª posição entre as nações mais violentas para as mulheres de um total de 83 países.
Pergunto-me: quantas pessoas ouviram as brigas e agressões e não fizeram nada? Poderiam ter impedido uma morte se tratassem a violência como violência, como um ato criminoso que precisa ser denunciado. Quando uma mulher é vítima de feminicídio, o problema é da sociedade.
A história de Maria da Penha Maia Fernandes, que deu nome para a Lei n.11.340/06, foi uma história de 23 anos de violência doméstica. Em 23 anos muita gente viu, mas somente após uma tentativa de homicídio ela conseguiu denunciar o marido. Não é fácil ter coragem e denunciar. Não é fácil manter a denúncia. Não é fácil enfrentar a pressão dos amigos que sempre veem “um casal feliz” e não entendem por que a mulher está fazendo isso com um cara tão legal! Não é fácil muitas vezes enfrentar a própria família que pede para ser paciente, dizem que não vai acontecer de novo, etc, etc!
Também não vamos reproduzir o discurso que liga o agressor a uma posição política contrária à sua. Homens de esquerda, direita e de quaisquer outras opções ideológicas agridem mulheres. Batem, estabelecem relacionamentos abusivos. Não associe a violência à bebida, não é real esta relação em muitos lugares e em muitas situações.
No momento em que celebramos 12 anos da Lei Maria da Pena, o que precisamos é impedir que a rosa seja despedaçada, que o cravo não se comporte como vítima e colocar a colher na briga entre marido e mulher. Sempre! Onde tem violência, o problema não é de dentro da casa, mas da sociedade, de todos nós!
Beatriz Cerqueira
Originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato-MG