Por Reinaldo Fernandes*
O governo de Minas e algumas pessoas, possivelmente ingênuas ou talvez mal informadas (queremos acreditar), defendem que precisamos de um Rodoanel para resolver os problemas de trânsito na região metropolitana de Belo Horizonte. Para eles, a questão é só achar o melhor traçado de suas quatro alças.
Primeiro: não precisamos! Segundo: não existe “melhor” traçado. Muito menos alternativas viáveis de traçado dentro da RMBH. Trata-se de um projeto ecocida. Vejamos por quê.
Proposta é preservar território das mineradoras e levar estrada na porta para elas
Em Brumadinho, incluindo Nova Lima, Ibirité e Sarzedo, o traçado proposto pelo governo Zema no segmento denominado alça sul destrói o Parque Estadual do Rola Moça e sua zona de amortecimento dos dois lados, porque quer passar bem no meio dele. Ah! Não é mais esse traçado? Quem garante? O Zema? O que finge discutir a questão com a população? É bom lembrar: o esboço de projeto prevê que “a empresa licitada terá o direito de definir o trajeto final”.
Dali, o rodoanel, conhecido popularmente como "Rodominério", porque parece por seu desenho geral servir ao transporte de cargas pesadas da mineração, continuaria destruindo fauna, flora, cavernas, patrimônio hídrico, histórico e cultural, incluindo a belíssima Serra da Calçada, tombada em nível estadual, onde há o famoso Forte de Brumadinho, além de moradias de nativos e condomínios; secando nascentes, mananciais e cachoeiras.
Precisamos investir no trem de passageiros, em metrô e no transporte público por ônibus
Nas outras alças, o governo Zema propõe que o Rodoanel passe, impactando severamente, e de forma irreversível, territórios tradicionais de agricultura familiar, o que poderá causar insegurança alimentar em toda a RMBH e mais desempregos, num país com pelo menos 14 milhões de desempregados.
Seguindo o trajeto de destruição, o traçado oficial do governo atingiria escolas de renome internacional, como a Escola Sandoval de Azevedo; unidades de ensino fundamental, médio, técnico e superior, como é o caso do Campus da UEMG de Ibirité; bem como cemitérios, além de outras tantas escolas, UPAs e bairros populosos em Betim e Contagem.
O trajeto indicado na alça oeste mutila a importantíssima área de proteção da lagoa Várzea das Flores em Contagem, importante fonte de abastecimento de água na região.
O que se chama de alternativa é: “aqui no meu quintal, não! Passe ali”
Na alça Norte, por sua vez, o que mais chama a atenção é que este rodoanel famigerado rasga ao meio a APA Lajinha, uma das poucas áreas verdes de Ribeirão das Neves protegida, onde se encontram seis nascentes de água.
No rastro de destruição, na bacia do Ribeirão da Mata, atingiria parte do sistema do fluviocarste da APA Norte e o rio das Velhas, impactando os territórios quilombolas de Pinhões e de Manzo Ngunzo Kaiango, em Santa Luzia. O trajeto passa, ainda, sobre o cemitério de escravos, onde foram enterrados os ancestrais dos quilombolas de Pinhões, habitantes desde o século XVIII dessa região.
Na porta das mineradoras, preservando-as e favorecendo-as
Curiosamente, se analisar todo o traçado, nota-se com certa facilidade que as mineradoras são cuidadosamente contornadas e protegidas desta obra, culminando bem em suas entradas. Passa assim do ladinho das minas, facilitando o escoamento de minério. Enquanto isso, por onde quer passar, em todas as suas alças componentes, milhares e milhares de famílias (estima-se mais de 30 mil pessoas) seriam retiradas de suas casas, de suas histórias, de seus vizinhos, de sua vida cultural, religiosa e seu sentimento de pertencimento.
Não existe “melhor” traçado. Trata-se de um projeto Ecocida
E quem são essas pessoas? Geralmente pobres, em sua maioria de negros. E quanto eles receberiam? Aquilo que todo mundo sabe: um valor muito inferior ao que vale seu imóvel, que seria lhe tomado em nome do “interesse público” por meio de um decreto. E quando ele fosse reclamar que recebeu apenas uns 20% do valor e que não conseguirá comprar outro imóvel parecido como seu em outro lugar, o que o governo lhe dirá? Que ele, se acha o preço injusto, que “entre na Justiça”.
A “Justiça” que todos nós conhecemos: a que deixa Bolsonaro matar milhares de pessoas com sua política de morte, a “justiça” que nunca prendeu Aécio Neves, a “justiça” que condenou, sem provas e manteve presos os jovens negros Rafael Braga e Heverton Enrique Siqueira, a justiça brasileira que só pune pobres e pretos.
Não adianta traçado “alternativo”
Aí, a AMDA, e outras “entidades” tentam convencer que o problema do Rodoanel é questão de traçado, e propõem o que chamam de “alternativa”. Qual o interesse destes que defendem os tais traçados “alternativo”? Alternativos para quem?
O que se chama de alternativa é: “aqui no meu quintal, não! Passe ali”. Ou, na melhor das intenções é: “vamos fazer o rodoanel num traçado que seja menos danoso, que cause menos impacto”. Menos impacto para quem mesmo? Isso tem nome: racismo ambiental.
Salvar fauna e flora e destruir vidas humanas, pode? Não pode passar dentro de parque, mas pode passar na área de amortecimento do mesmo parque, mas do outro lado? Destruindo mananciais como Taboões, Balsamo, os vales dos rios Jatobá e Cercadinho? Como assim? Alguém acha que se secar os mananciais de água do lado de Ibirité não vai secar do lado de Brumadinho ou Sarzedo? Que lençol freático respeita divisão política?
Sejamos honestos: não existe grande obra que seja “menos danosa”. Esse tipo de obra é, em sua essência, destruidora. Não adianta afirmar que ao invés de destruir 20 mil famílias serão “só” 10 mil. Essas 10 mil vidas não importam? Ou, “não vai destruir todas as nascentes, só parte delas”. Toda nascente importa numa região que precisa dar água para 7 milhões de habitantes.
Também não adianta afirmar que, “vai prejudicar o patrimônio histórico e pré-colonial, mas é só história e memórias ancestrais”. Por quê? A história é importante, é ela que nos ensina a viver melhor e a não cometer os mesmos erros.
E o argumento mais usado: “nós precisamos deste rodoanel para resolver os problemas de trânsito na região metropolitana”. Essa é apenas mais uma mentira! O rodoanel não resolve! Se analisarmos, honestamente, veremos que não.
Rodoanel não resolve
Para que serve um rodoanel de 110 km que só tem oito entradas e saídas dele? Para que ninguém entre ou saia, para que os cidadãos que precisam de uma rodovia mais rápida e com menos veículos não usem, mas seja usado apenas para grandes empresas transportadoras de mercadorias e minério, para viagens mais distantes.
E se nós conseguirmos usar, como fica? Você vai pagar, para início de conversa, R$ 3,50 para cada 30 km rodados, R$ 35 se quiser atravessar toda a extensão do rodoanel. Ou seja, uma obra para uso privado, feita com dinheiro sujo de lama e sangue!
Os ônibus que carregam a população pobre, vão passar pelo rodoanel? Não! Praticamente nada, com acontece hoje com o Anel Rodoviário de BH! Portanto, não melhora nada também para os usuários de transporte coletivo.
O atual anel rodoviário de BH mata centenas e centenas de pessoas. De 2014 a 2018, foram mais de 4 mil acidentes registrados. O rodoanel trará mais segurança do que o anel rodoviário? Estudos de engenharia já mostram que não, pelo contrário, é uma obra que matará mais, com tecnologia atrasada, que há muito não é mais usada na Europa, por exemplo.
Do que precisamos então?
De projetos comprometidos com economias de baixo carbono nas cidades. De não colocar veículos pesados circulando dentro da RMBH, produzindo mais CO2. Isto fere os compromissos internacionais firmados pelo Brasil, bem como o Estatuto da Cidade.
Precisamos que o dinheiro vindo da morte de 273 pessoas dos crimes da Vale em Brumadinho seja usado para melhorar o bem viver do povo e não para piorar a qualidade de vida das pessoas e atingi-las novamente.
Querem, mesmo, melhorar a mobilidade urbana na região metropolitana? Precisamos, então de investir em metrô: mais rápido, mais econômico, carrega mais pessoas, não se atrasa, tira ônibus e carros particulares das ruas. Metrô de Ibirité ao Barreiro e à Santa Luzia; de Nova Lima a Igarapé.
Precisamos investir no trem de passageiros – sem necessidade de nenhuma obra! -, de Jeceaba a BH, oferecendo transporte para Moeda, Brumadinho, Mário Campos, Sarzedo, Ibirité.
Precisamos de transporte público por ônibus que tenha mais horários, qualidade, preços baixos, rapidez para diminuir a presença dos automóveis particulares nas vias.
No mais, é engodo. É tentar “passar a boiada”.
* Reinaldo Fernandes é professor, mestre em Linguística pela FALE-UFMG, atingido dos crimes da mineradora Vale em Brumadinho, da Coordenação do Movimento “Somos Todos contra o Rodoanel”, membro da Frente Brasil Popular – Brumadinho e editor do Jornal de Fato. Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato/MG