Relatórios da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) descrevem a atuação de grupos criminosos armados voltados à prática de caça e pesca ilegais no interior da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, onde foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips.
Os documentos, aos quais o Brasil de Fato teve acesso, identificam a atuação de seis grupos de invasores formados, cada um, por até oito integrantes armados. Eles conduziam embarcações capazes de transportar até 12 toneladas de carne extraída ilegalmente da região dos rios Itaquaí e Ituí, por onde o indigenista e o jornalista navegavam antes de desaparecerem.
As informações produzidas pela Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), integrada por Bruno Pereira, contrariam a conclusão divulgada pela Polícia Federal (PF) de que não houve mandante nem organização criminosa por trás dos assassinatos.
O entendimento da PF foi contestado publicamente pela Univaja. Segundo a organização, os investigadores desconsideraram os relatórios produzidos pela vigilância indígena. "Tais documentos apontam a existência de um grupo criminoso organizado atuando nas invasões constantes à Terra Indígena Vale do Javari (...)”, afirmou nota da entidade na última semana.
Outros envolvidos
Entre os invasores citados nos relatórios da Univaja, está Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, preso por suspeita de envolvimento no crime.
“Por fim, na noite do dia 03/04, quando a EVU estava finalizando suas atividades, chega a informação que o ‘Pelado’, morador da comunidade São Gabriel e de Benjamin Constant, estava com outros 4 ou 5 infratores pescando no interior da terra indígena, próximo a aldeia [dos indígenas] Korubo”, diz trecho do documento.
Os relatos citam nomes de pelo menos outros dois criminosos ambientais que até agora não foram responsabilizados pelas mortes. Ambos estariam ligados ao tráfico internacional de drogas, segundo disse ao Brasil de Fato um indígena que trabalhava na fiscalização ao lado de Bruno no mesmo dia do desaparecimento.
“Não podemos descartar nenhum tipo de envolvimento desse pessoal [pescadores e caçadores] com o narcotráfico. Eles são envolvidos direta e indiretamente. Eles [pescadores] trabalham para eles [traficantes]. Se eles [pescadores] ficarem soltos, vai continuar a mesma coisa. Porque o narcotraficante vai trabalhar em cima deles”, afirmou sob anonimato.
Autoridades sabiam da atuação de criminosos organizados
A denúncia que cita “Pelado” tem data de 12 de abril e relata a sexta atividade de fiscalização conduzida pelos indígenas com apoio de Bruno Pereira. Nessa expedição, a Univaja afirma que “foram mapeadas cinco embarcações pesqueiras de grande porte (13 metros, caixa de gelo de 8 toneladas, e carga total de aproximadamente 12 toneladas) nas proximidades da Base de Proteção da Funai na boca do rio Ituí”.
Desde setembro do ano passado, autoridades federais de segurança, entre elas a PF, já haviam recebido pelo menos seis ofícios da Univaja com detalhes da atuação dos grupos, descritos nas denúncias como “profissionais” em saquear os recursos naturais da segunda maior terra indígena do Brasil. As informações também foram encaminhadas à Força Nacional, ao Ministério Público Federal (MPF) e à Funai.
“Os nomes dos integrantes dessas quadrilhas, bem como seus líderes, receptadores, financiadores, e métodos de atuação estão sendo repassados à Polícia Federal (PF), conforme encaminhamento da última reunião entre UNIVAJA, MPF, PF e Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), na sede do MPF em Tabatinga-AM, no último dia 04/04/2022”, diz trecho da denúncia feita pela organização indígena.
Além da identificação dos invasores, a Univaja forneceu às autoridades os locais de atuação dos criminosos e os caminhos alternativos usados por eles com o objetivo de entrar na área protegida sem alertar a fiscalização.
De acordo com os relatos dos indígenas, algumas equipes de pescadores e caçadores faziam incursões que duravam mais de 20 dias no interior da TI e transportavam mais de 900 kg de sal para conservar a carne retirada ilegalmente da área indígena.
Um dos relatos, datado de 19 de março deste ano, descreve o momento em que os indígenas flagram uma embarcação de médio porte deixando a TI. Ao perceber que eram invasores, eles tentaram fazer uma abordagem, mas os ocupantes fugiram.
“A movimentação de pequenas canoas de infratores fugindo da terra indígena é intensa nos primeiros dias de atuação da EVU, porém os ingressos de infratores vão diminuindo significativamente com a presença indígena da EVU”, conclui o relato.
Invasores reagiram a tiros
No dia 23 de março, a equipe de vigilância relatou estar monitorando a atuação de outro invasor. O grupo descobriu que os recursos extraídos ilegalmente da TI seriam levados para a cidade de Atalaia do Norte naquela noite.
A informação é repassada à Funai e à Força Nacional, que abordam a embarcação no porto do município. No barco, são apreendidos 25 tracajás, 2 tartarugas, 300 kg de carne de queixada salgada e 400 kg de carne de pirarucu salgada. Dois homens que conduziam a embarcação foram presos, e os animais foram devolvidos à TI.
Outro episódio narrado pelos indígenas demonstra a escalada da violência na região antes dos assassinatos de Phillips e Pereira. Com os rostos escondidos pelas camisas, três pescadores são vistos deixando os limites da TI durante a noite. A EVU tenta fazer uma abordagem. “Os infratores reagem atirando sete vezes com espingarda contra a equipe da EVU, que recua ao ver eles adentrando no igapó na margem esquerda do Itaquaí”, diz o relato.
Após o tiroteio, que não deixou feridos, a Univaja acionou a Funai e a Força Nacional. Ambos os órgãos, no entanto, não prestaram auxílio. A Força Nacional informou que “não pode autorizar a saída de sua equipe em virtude do baixo contingente na base naquele momento (2 policiais) e pela carência de equipamentos logísticos na embarcação à disposição da Funai, sobretudo holofotes”, diz o ofício da Univaja.
Narcotráfico está presente na região, diz especialista
O geógrafo e professor Aiala Couto, da Universidade do Estado do Pará (UEPA) diz que a situação no Vale do Javari se agravou nos últimos cinco anos, em função da chegada de facções ligadas ao tráfico de drogas.
As organizações criminosas transportam cocaína ao Brasil utilizando as mesmas rotas dos pescadores e caçadores ilegais. O fator de maior influência, segundo o pesquisador, foi o enfraquecimento das políticas ambientais, principalmente na gestão de Jair Bolsonaro (PL).
"O incentivo ao garimpo e à exploração legal de madeira fortaleceu não apenas a retirada de recursos naturais, mas também o crime organizado do narcotráfico", afirma Couto. "As facções começam a se conectar com o crime ambiental que já ocorria lá. E é óbvio que isso é responsabilidade do governo federal", pontuou.
Procurada, a PF não respondeu aos questionamentos da reportagem. O espaço segue aberto.
Murilo Pajolla, Brasil de Fato | Lábrea (AM)