Em greve há mais de uma semana, os trabalhadores e trabalhadoras dos Correiros denunciam a ausência de negociação por parte da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) e do governo federal. A empresa, sob orientação do governo Bolsonaro, retirou ou reduziu, de forma unilateral, 70 dos 79 pontos do Acordo Coletivo da categoria, após obter liminar na Justiça.
Estão entre os pontos retirados: o tempo de licença-maternidade de 180 dias para 120 dias; o pagamento de adicional noturno e de horas extras; 30% de adicional de risco (insalubridade); indenização por morte; auxílio para filhos com necessidades especiais; anuênio por tempo de trabalho e o auxílio-creche. Os cortes, que complementam o salário médio de R$ 1,8 mil, representam um impacto significativo na renda mensal dos mais de 80 mil trabalhadores dos Correios e suas famílias.
Com mais de 18 anos dedicados aos Correios, o carteiro Eduardo Soares*, de 44 anos, calcula que, sem os direitos atuais do acordo coletivo, seu rendimento pode cair de 50% a 70%.
Motorista no setor de carga na cidade de São Paulo, seu salário base é cerca de R$ 2,1 mil. Com a proposta da empresa, o valor líquido pode chegar a menos de R$ 1 mil, o que é insuficiente para o sustento dele, esposa e três filhos, de três, 13 e 14 anos.
Nascido em Vitória da Conquista (BA), o trabalhador lembra que fez cursinhos para passar no concurso dos Correios e que o trabalho foi essencial para se estruturar na capital paulista, e possibilitar plano de saúde para os pais e família, mas agora se sente “traído e sem esperança”.
Ele diz sentir na pele o que considera uma “mudança na filosofia da empresa”, que antes era voltada para o serviço social e agora está focada unicamente no lucro, visando à privatização.
“Eu não tenho que reclamar da empresa, até ontem era a melhor empresa do mundo. Mas aí começou a falar de privatização e terceirização, começou a precarizar tudo. Não quer saber da saúde do funcionário ou se os clientes estão satisfeitos, quer saber o seguinte, está entrando dinheiro, está bom”, desabafa Soares.
Soares conta que foram os benefícios que o atraíram para trabalhar nos Correios, que sempre tiveram salários baixos – segundo a categoria, de todas as estatais, a empresa é a que, em média, paga os salários mais baixos –, e ressalta que, se os cortes acontecerem, terá que abandonar o plano de saúde.
“Estamos na greve para receber nossos direitos, porque muitas vezes abrimos mão de aumento de salário, por causa dos benefícios. O nosso salário para quem tem 18 anos de empresa, 2.100, você acha que é um salário alto? Não é. Se cortar os benefícios, acabou. Agora até sair do convênio vou sair, porque não estou aguentando pagar”, pondera.
O convênio médico passou a ser descontado em 50% para os trabalhadores após a liminar da empresa no STF, além de impossibilidade da inclusão de pais como dependentes e o desconto de 30% a 50% conforme o uso no plano. Ou seja, além da maior porcentagem da mensalidade, os trabalhadores pagam também uma parte do procedimento ou consulta.
Mesmo em meio à pandemia – que já deixou mais 115 mil mortos (evitáveis) e 3.6 milhões de infectados –, mais de 34 mil trabalhadores já abandonaram o plano de saúde, de acordo com a Findect.
Risco à vida
A preocupação pelos descontos do plano de saúde e da retirada dos direitos do acordo coletivo é a mesma no Nordeste do país. O carteiro Antônio Souza, de 38 anos, trabalha há 15 anos entregando correspondência nas ruas da capital alagoana, Maceió, e afirma que se a empresa fizer os cortes, vai ganhar muito menos que um salário-mínimo.
Ele recebe um salário-base de R$ 1.980, mas com as funções de trabalho que a ETC quer retirar, como 30% de adicional de risco de carteiro e 15% do anuênio, seu rendimento bruto fica R$ 2.3 mil, sem os descontos e plano de saúde. Além do vale-refeição e alimentação, que a empresa já diminuiu mesmo com o empasse nas negociações coletivas.
O salário do carteiro é o único sustento da família com a esposa e os dois filhos, de seis e oito anos. “Meu salário vai ser só para pagar plano de saúde, como fica aluguel, a escola das crianças? Essa é a preocupação que a gente está.”
Souza conta com orgulho que os Correios têm um papel muito importante para a sociedade e que sente a alegria das pessoas ao recebê-lo de porta em porta, mas se sente desvalorizado pela empresa e “muito triste”, com esse "retorno" imposto pelos anos de dedicação ao trabalho. Ainda sim, para ele, “a empresa é muito boa”. O problema é a atual gestão.
“A gente, no dia a dia, enfrentando não só o sol, chuva, cachorro, tudo isso que a gente corre, de atropelamento e tudo mais. Ainda tem a covid, que acometeu a vida de mais de 100 trabalhadores da empresa aqui no Estado. A gente fica morrendo de medo. Nós sabemos da importância social que os Correios têm e mesmo diante do medo, a gente tem que continuar trabalhando. Mas o momento em que a empresa deveria valorizar minimamente, não o faz”, expressa ele, reiterando que os trabalhadores não reivindicam aumento salarial, mas a manutenção dos direitos.
Assim como a maioria das unidades nos outros estados do país, o sindicato alagoano precisou entrar na justiça para garantia pela ETC dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os trabalhadores. Ainda sim, segundo Souza, são apenas duas máscaras por dia para cada funcionário que trabalha durante oito horas no contato com o público. Número insuficiente de acordo com as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS), que estabelece troca a cada duas horas de uso.
"Nem segurança a gente teve e é muito triste isso, porque literalmente estamos correndo risco de vida por ser carteiro e piorando, ainda mais, por conta da covid-19”, pontua Souza, que dá o recado: “o que a sociedade tem que entender é que a gente fez concurso público, não entrou porque deixou currículo na empresa. Eu mesmo me dediquei mais de um ano, paguei cursinho na época, abdiquei de vida social, de família, para estudar, para ter um concurso público. Depois de tanta dedicação, a empresa simplesmente tira tudo que foi conquistado ao longo de 30 anos de luta da categoria, isso que nos revolta.”
Mulheres mais prejudicadas
Em São José do Rio Preto (SP), a carteira Luciana Gonçalves*, de 45 anos, enfatiza que, diante da tentativa de retirada de direitos, as mulheres são as mais prejudicadas. Afinal, além dos demais cortes, também terão redução nos 180 dias de licença maternidade para 120 dias; durante a amamentação, as funcionárias não terão mais direito a carga horária reduzida de seis horas, assim como a redução dos atestados de acompanhamentos médicos para três ao ano e cortes no auxílio-creche.
Ela atua hoje como motorista, mas, durante os seus 17 anos na empresa, em 15 esteve na entrega de postais de bicicleta. A licença maternidade e o programa para amamentação foram essenciais para a criação de dois dos seus três filhos, hoje com 11 e nove anos.
Gonçalves também recebe um salário-base de R$ 1.980, recebe adicional de risco, anuênio, e sustenta a casa com ajuda do marido. “O impacto vai ser grande, porque meu marido é autônomo, então há meses que ele está trabalhando, e há outros que não. Então, eu tenho que bancar tudo, aluguel, água, luz, alimentação. Vai ser muito difícil se a gente perder os direitos”, analisa ao calcular que hoje, sem os cortes, recebe R$ 1.7 mil líquidos.
Outro aspecto que atinge a família é o auxílio para filhos com necessidades especiais. O caçula tem Síndrome de Moebius, que afeta, principalmente, a coordenação motora. Durante todos esses anos, Gonçalves conseguiu pagar terapia ocupacional com o auxílio para que o pequeno pudesse se desenvolver.
“Ele faz terapia ocupacional desde os três anos de idade, está com nove atualmente e, se não tivesse feito terapia ocupacional, hoje não estaria estudando, escrevendo. Não faria muita coisa com as mãos. Se perder esse benefício, vai ser muito difícil pra mim, porque o estado não vai pagar a terapia”, pontua.
Ela relembra que os direitos retirados foram conquistados com a luta dos trabalhadores ao longo desses anos e também se entristece por ver seu comprometimento e dedicação reduzidos pela direção da empresa.
“Eu fico muito triste, porque os Correios são uma empresa pública de qualidade e excelência. Os clientes confiam muito na gente, havia lugares que eu ia entregar que as pessoas não estavam em casa e deixavam a chave na caixinha, porque sabem que somos comprometidos. Agora, a gente recebe isso da empresa em troca, é muito desolador”, declara a profissional.
Tanto Gonçalves, como Soares e Souza, ressaltam que a mobilização não é por “privilégios”, como o governo tem pautado, e acreditam que a força dos trabalhadores de todo o país pode reverter o que consideram “ataque aos direitos e aos Correios”.
“Eu espero que dê certo, porque a categoria é muito unida e forte. Eu tenho certeza que vai prevalecer nossos direitos, porque somos essenciais no Brasil. Enem, eleições, livros da escola, existem muitas atribuições que os Correios fazem e que outras logísticas não conseguem fazer. A gente espera ser valorizado e que eles entendam nosso lado também, não podemos trabalhar a troco de nada, nosso comprometimento é muito grande”, encerra Gonçalves.
*Nomes fictícios, trabalhadores preferiram preservar sua identidade com medo de represaria da empresa.
Fonte: Brasil de Fato