Professor da Harvard diz o que dinheiro não compra



Professor da Harvard diz o que dinheiro não compra

Por US$ 500 mil, é possível adquirir o direito de ser imigrante nos Estados Unidos. Uma barriga de aluguel na Índia para quem quer ter um filho custa US$ 6.250. Reunidos pelo americano Michael Sandel no livro "O que o dinheiro não compra", esses exemplos - e muitos outros - ilustram como a lógica de mercado se infiltrou em áreas do cotidiano em que sua presença seria considerada insólita três décadas atrás. Descrito como um "superstar acadêmico" pelo "New York Times", Sandel leva para suas aulas na Universidade de Harvard discussões sobre o conceito de justiça e os limites morais dos mercados.

A crise financeira de 2008 representou de alguma forma a falência moral do mercado?

Os mercados têm se mostrado muito eficientes para organizar a produção de bens materiais, mas, de forma crescente, a lógica de mercado começou a prevalecer e até dominar aspectos da vida cotidiana onde antes não estava presente. Quando a crise financeira veio em 2008, muitos de nós esperávamos que ela trouxesse um debate público nas sociedades democráticas sobre onde os mercados contribuem para o bem comum e quais os lugares aos quais eles não pertencem. Mas esta última crise não trouxe um debate sério sobre o papel adequado dos mercados nas nossas sociedades.


Em "O que o dinheiro não compra", o sr. analisa um acordo que permitiu a um banco dar nome a uma estação de metrô em Nova York. O que há de errado com essa mercantilização?
Junto com o papel crescente dos mercados no cotidiano em décadas recentes, há uma tendência de se mercantilizar mais e mais aspectos da vida, incluindo espaços públicos. Por exemplo, muitas cidades e municípios nos Estados Unidos, desesperados por financiamento, venderam a corporações os naming rights (direitos sobre a propriedade de um nome) para estações de metrô, parques públicos e até praias. Na minha visão, a modificação dos nomes de lugares públicos por meio de patrocínio transforma seus significados. Se temos espaços que nós compartilhamos, como parques e praias, dominados pelo comercialismo e pela exposição de marcas, então a função cívica desses espaços na nossa vida foi erodida. Esse tipo de mudança altera a paisagem cívica e gradualmente transforma nossas identidades de cidadãos em consumidores. É por essa razão que considero que a tendência de comercialização dos nomes dos espaços públicos pode corroer nossa identidade cívica.

Ao discutir o conceito de justiça, o sr. com frequência discorre sobre a filosofia utilitarista, que considera se uma decisão é moralmente aceitável ou não dependendo da felicidade a ser produzida para o maior número possível de indivíduos. O utilitarismo ainda prevalece na avaliação custo-benefício que as companhias fazem hoje?
É verdade que a filosofia utilitarista está na base da maior parte das análises custo-benefício, assim como a aplicação da mentalidade de mercado aos problemas sociais. Em décadas recentes, economistas tentaram estender a lógica econômica e de mercado do domínio dos bens materiais para a vida social em geral. Muitos economistas tentam mostrar a economia como uma ciência de valores neutros, uma ciência do comportamento humano e da escolha social. No passado, a economia se preocupava com temas econômicos tradicionais, tais como inflação, desemprego e déficits.

Quando se deu essa mudança na ciência econômica?

A partir dos anos 70, 80 e até hoje, muitos economistas ampliaram suas ambições e começaram a defender que a lógica econômica e o raciocínio de mercado também podem explicar questões como quando e onde casar-se, quantos filhos ter, continuar casado ou divorciar-se. Isso passou a ser a forma econômica de olhar a vida e está cada vez mais influente em nossas sociedades. E, por detrás dessa forma de pensar, usada para avaliar questões éticas, não está uma ciência neutra. A filosofia utilitarista assume que todos os valores podem ser reduzidos a termos monetários e comparados, o que em última análise é a ideia por detrás da análise custo-benefício. Mas eu acredito que esse pressuposto utilitário está errado. Para que fosse verdadeiro, seria necessário negligenciar valores que estão fora do mercado, como o respeito à dignidade humana, por exemplo. Então, meu principal argumento é de que a economia não é uma ciência neutra da escolha social. A economia deve ser reconectada à filosofia moral e política. É um erro tentar destacar a economia de valores e da ética.

O sr. afirma num de seus livros que a lógica do mercado também priva a vida pública de um fundo moral...

Sim. Esse pensamento priva a vida pública de um fundo moral e cívico e, também, substitui os valores e identidades cívicos pelos comerciais.

A terceirização da guerra, com a contratação de empresas privadas de segurança no Afeganistão e no Iraque, é um indício de que a máquina estatal está se convertendo numa estrutura privada?
Sim, há uma tendência nesta direção. No Iraque e no Afeganistão havia em terra mais soldados de empresas privadas do que tropas militares norte-americanas. E isso não se dá porque nunca tivemos um debate público sobre se queremos terceirizar a guerra para companhias privadas. Isso é o que vem acontecendo: nas últimas três décadas, quase sem percebermos, nós passamos de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado. A economia de mercado é uma ferramenta valiosa e eficiente para organizar a atividade produtiva. Mas a sociedade de mercado é um lugar em que quase tudo está à venda. É um modo de viver em que os valores do mercado começam a dominar todos os aspectos da vida. Da vida familiar e das relações pessoais até a saúde, a educação, a política, as leis, a maneira como lutamos nossas guerras. A terceirização da guerra para companhias privadas é outro exemplo do efeito corrosivo que os valores do mercado podem ter sobre a vida cívica.


Essa terceirização também ocorreu na espionagem, denunciada por Edward Snowden, que mostrou uma relação promíscua entre a NSA (Agência de Segurança Nacional, dos Estados Unidos) e o setor privado...

É muito interessante que um dos aspectos da controvérsia envolvendo Snowden é que ele não era um membro do governo norte-americano, ou do serviço de inteligência. Ele teve acesso a todas essas informações sigilosas sendo um mero analista terceirizado de empresa privada. Acho que isso é um sinal dos tempos, e um exemplo que ilustra o fato de que terceirizamos não apenas serviços militares para empresas privadas. Agora, nós terceirizamos também serviços de inteligência. Isso traz à tona questões sérias sobre a responsabilidade do governo em prestar contas à sociedade e sobre a integridade da nossa vida cívica.

A principal razão para a existência de uma empresa é a busca pelo lucro. Mas é possível conciliar o ganho financeiro com uma prática social concreta?
Acho que é possível conciliar a saúde financeira com uma responsabilidade social. Algumas das mais bem-sucedidas corporações levam a responsabilidade social a sério. Acho um erro ver a missão e o propósito das empresas em termos excessivamente estreitos. Milton Friedman, um economista defensor do livre mercado, disse uma vez que o único propósito de uma companhia é maximizar o valor criado para seus acionistas. Eu discordo. Vejo como uma forma muito estreita de conceber a missão e o propósito de uma companhia. Acho que as corporações existem, em última instância, para servir ao bem público. E a maneira de fazer isso é oferecer seus serviços de uma maneira que contribuam para o bem público e permita à empresa ser lucrativa. Não há questionamento sobre isso. Mas, a criação de valor para o acionista não é um fim em si mesmo. É uma das medidas da habilidade das corporações em realizar esse objetivo social mais amplo. Por isso, penso que as empresas precisam cumprir sua missão numa escala mais ampla, para incluir a responsabilidade na sua estratégia, beneficiando seus clientes e as comunidades. Acredito que muitas das companhias mais bem-sucedidas realmente possuem essa visão ampla de suas missões e propósitos.

Com relação aos avanços científicos atuais, você acha que estamos caminhando para uma sociedade perfeita modificada geneticamente? Ou esta é somente uma ilusão de ficção científica?

Penso que há muitas coisas em questão sobre os usos que iremos fazer das novas tecnologias genéticas. É possível que as pressões da sociedade de mercado levem a uma tentação de usar as novas tecnologias genéticas para aumentar o limite competitivo para elas e seus filhos. Se fizermos isso, estaremos mais próximos do pesadelo do que da ficção científica. Por outro lado, se usarmos as tecnologias genéticas como deveríamos, estaremos criando um novo capítulo no combate às doenças e promovendo-nos.


Em suas aulas, o sr. costuma mencionar a ideia de que o sucesso é, quase sempre, uma espécie de loteria, influenciada por fatores que vão muito além das nossas escolhas. Como os alunos reagem a esse tipo de afirmação?

Essa é uma questão que costumo discutir quando falo sobre justiça: quem merece o quê e por que? Em que medida disparidades de renda e riqueza se justificam? Um jogador de futebol merece ganhar mil vezes mais do que um professor escolar ou uma enfermeira? No meu livro "Justiça" eu pergunto se há justificativas morais para isso. Quando eu discuto o tema com meus alunos, muitos deles argumentam que os profissionais que recebem altos salários, como por exemplo um ídolo esportivo, merecem moralmente receber mais porque eles trabalham duro, treinam muito, fazem um esforço enorme. O problema desse argumento, contudo, é que as diferenças na remuneração não necessariamente refletem diferenças no nível de esforço que, por exemplo, um professor escolar faz. Ele pode se esforçar na sua profissão tanto ou mais que um grande jogador de futebol. O que responde por essas diferenças de renda é menos o esforço do indivíduo e o merecimento moral e mais a sorte que alguns de nós possuem de ter os talentos e as habilidades que a sociedade mais valoriza. Mas a sorte de nascer com tais talentos e habilidades não é uma escolha nossa.

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