Estimulada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a privatização de cinco parques e florestas nacionais deverá aprofundar um processo de apagamento dos modos de vida tradicionais que começou na ditadura militar e só foi interrompido recentemente, a partir de intervenções do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União (DPU). A avaliação é feita por especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.
“Quando a gente está conseguindo que o Estado dê uma guinada no sentido de reconhecer essas populações, vem mais essa mudança. E a gente não tem a menor ideia do que vai ser a nova diretriz da gestão desses lugares”, afirma a antropóloga Ana Beatriz Viana Mendes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A inclusão de cinco novas unidades de conservação no Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo federal pode significar uma nova ameaça à sociobiodiversidade e aos direitos de populações tradicionais que há décadas se reivindicam como legítimas ocupantes desses territórios, avaliam os especialistas.
A privatização está sendo estimulada por meio de um decreto assinado por Bolsonaro em 7 de fevereiro, após recomendação do conselho do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), formado pelo presidente e por ministros de Estado.
Segundo o governo federal, o objetivo é promover a concessão dessas áreas à iniciativa privada para a execução dos serviços públicos de apoio à visitação, com previsão do custeio de ações de apoio à conservação, à proteção e à gestão.
Unidades a serem privatizadas
Entraram na “fila” da privatização as seguintes unidades de conservação: Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, no Rio de Janeiro; Parque Nacional da Serra da Canastra e Parque Nacional da Serra do Cipó, ambos em Minas Gerais; Parque Nacional de Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo; e Floresta Nacional de Ipanema, em São Paulo.
O projeto da concessão será financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e o leilão ficará a cargo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), atual gestor das unidades.
Parques devem ser lucrativos?
O assessor jurídico da ONG Terra de Direitos, Pedro Martin, afirma que a desestatização tem como inspiração o modelo norte-americano de turismo ecológico. A justificativa é que as unidades de conservação podem gerar alta lucratividade e possibilidades de investimentos, assim como ocorre nos Estados Unidos.
“A privatização vem de um fundamento de que o Estado não teria, em tese, competência para o aproveitamento econômico dessas unidades e as coloca dentro de uma estratégia de mercado”, afirma o advogado.
“Então se descaracteriza a proteção ambiental dessas áreas a partir da entrega à iniciativa privada, que é, muitas vezes, um processo sem participação social, principalmente das pessoas mais interessadas”, complementa.
Direitos ameaçados
Martin identifica a ameaça de três direitos das populações tradicionais: “O direito ao território, que significa também o controle do espaço por esses habitantes. O acesso à participação em qualquer processo público não sigiloso e que envolva o interesse público da sociedade. E também o próprio direito à consulta prévia, livre e informada”, enumera.
Em meio à pandemia, o controle social do processo de privatização de unidades de conservação se torna ainda mais precário. Sem audiências públicas presenciais, parte dos moradores fica impossibilitada de participar das discussões virtuais, em razão da necessidade de acesso à internet.
A estratégia de entrega da gestão unidades à iniciativa privada está presente desde o início do governo Bolsonaro, defendida pelo ex-ministro Ricardo Salles. Ele chegou a propor a concessão sem licitação das serras da Canastra e do Cipó à Vale, após os crimes de Brumadinho
Criminalização da luta pela terra na Serra da Canastra
Juntas, as cinco unidades a serem privatizadas têm quase 2,8 mil quilômetros quadrados, três vezes o tamanho da área urbana da cidade de São Paulo. Com quase 2 mil quilômetros quadrados, a maior delas é a Serra da Canastra, lar das nascentes do rio São Francisco e de comunidades tradicionais que ocupam a região há pelo menos 250 anos.
Segundo Aderval Costa Filho, antropólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Serra da Canastra é ocupada por mais de 1.500 famílias de produtores e moradores da área rural, 43 comunidades tradicionais e 550 famílias tradicionais da região.
O Parque foi criado em 1972 durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, sobrepondo-se a territórios já habitados por essas populações. Até há pouco tempo, explica o pesquisador, a relação do Estado com as comunidades era marcada pela truculência.
“Embora tenha sido legitimado a partir do apelo de vários setores da sociedade, o Parque foi implementado à força e à revelia, sem qualquer tipo de negociação com as famílias e comunidades que habitavam a região, que foram expropriadas do seu próprio território com violência e com muito autoritarismo”, conta.
Ao estudar a região durante dois anos para a elaboração de um laudo antropológico a pedido da Justiça Federal, Filho concluiu que houve um processo de criminalização de produtores e de lideranças locais, envolvendo organizações de base que lutavam pela permanência de seus modos de vida.
“Houve várias medidas de aquisição de propriedades, constantes autuações de infração ambiental aos proprietários, sobretudo por realizar o manejo controlado do fogo nas partes baixas e algumas partes altas que ficaram fora da área desapropriada e regularizada”, afirma.
A tensão só diminuiu a partir de 2017, quando uma ação ajuizada pela Defensoria Pública da União (DPU) resultou uma vitória judicial reconhecendo o direito à exploração econômica dos “canastreiros”, população que tradicionalmente explora a agricultura, pecuária e a mineração.
O antropólogo lamenta que a unidade esteja prestes a ser privatizada, em um momento em que as famílias estão sendo tratadas com mais respeito e tolerância pelo poder público. E alerta: o enorme potencial de extração de diamantes na Serra da Canastra pode estar por trás de interesses privados.
“Se empresas de mineração forem apontadas como potenciais cessionárias dessa concessão - e considerando também os crimes socioambientais que têm sido cometidos por essas empresas - pode-se aí inferir que sorte de interesses pairam sobre a Serra da Canastra. Não só riscos à manutenção dos modos de vida, mas à própria preservação dos recursos naturais”, afirma.
Famílias expulsas da Serra do Cipó
Localizada na zona metropolitana de Belo Horizonte, a Serra do Cipó é um dos destinos turísticos mineiros mais importantes. O Parque Nacional que carrega o nome da formação geológica foi criado como unidade estadual em 1979.
“A ditadura militar simplesmente expulsou pequenos produtores da área e várias famílias saíram sem nenhuma indenização e sem ter lugar para viver”, conta a antropóloga Ana Beatriz Viana Mendes, da UFMG.
“Esse processo aconteceu não só na época de criação do parque, mas também nos anos seguintes. A gente vê até recentemente poucas famílias resistindo a se manter no lugar, em razão das multas e da fiscalização que proíbe, por exemplo, o corte de uma capoeira que está em estado de regeneração para fazer roça”, descreve a pesquisadora, que acompanha conflitos envolvendo unidades de conservação desde os anos 2000.
Segundo ela, apenas cinco famílias se mantiveram no território, além de outras sete que fazem uso esporádico das terras. Assim como no caso da Serra da Canastra, elas tiveram seus direitos declarados recentemente. Em 2019, uma negociação mediada pelo Ministério Público Federal (MPF) reconheceu que os habitantes podem fazer o manejo tradicional, conforme aprendido com seus ancestrais.
“Então quando a gente está conseguindo que o Estado dê um pouco essa guinada no sentido de reconhecer esses direitos, vem mais uma mudança que é a concessão para iniciativa privada. E a gente não tem a menor ideia de qual vai ser a nova diretriz da gestão desses lugares”, avalia Mendes.
A Serra do Cipó também é alvo da exploração mineral. No município de Conceição do Mato Dentro, a Anglo American explora ferro e expõe a população ao risco de rompimento de uma barragem, a exemplo do que aconteceu com em Mariana e Brumadinho, cidades não muito distantes da unidade de conservação.
“A gente está nesse contexto de dizimação por completo feito pela iniciativa privada feita nos territórios e aos povos que vivem nos territórios. E agora vem essa abertura para a concessão. Isso me soa muito impossível de ser bem feito, tendo em vista o contexto”, opina a pesquisadora.
Murilo Pajolla. Brasil de Fato | Lábrea (AM)