Suspensa desde julho por decisão do ministro do STF Ricardo Lewandowski, a venda de refinarias, parte do plano de desinvestimento da Petrobras, voltou ao noticiário na quarta-feira 5 com a abertura de processo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para investigar eventual abuso do poder de mercado.
A ação surge como nova justificativa para prosseguir no desmonte da estrutura da empresa, agora que a melhora da sua situação financeira enfraquece o argumento da suposta necessidade de privatizar às carreiras as controladas e outros ativos para reequilibrar suas contas. As refinarias da petroleira atendem a 95% do mercado e obedecem ao artigo nº 177 da Constituição Federal, que estabelece o monopólio da União na pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural e a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro.
As etapas de refino, transporte e distribuição percorridas pelo petróleo desde a sua extração até a entrega de derivados nos postos de serviço gasolina agregam valor ao óleo bruto. Possibilitam ainda transferir de modo gradual as variações da cotação em dólar do petróleo no mercado internacional aos preços internos em reais dos derivados. Assim foi feito durante os governos do PT, esclareceu o ex-presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli em entrevista a esta revista.
Nesse período, “os preços dos derivados eram ajustados em ciclos longos, levando-se em conta as expectativas de variações futuras da taxa de câmbio, do preço do petróleo, do preço dos derivados e do mercado interno brasileiro. Além disso, os acionistas tiveram os maiores lucros da história da Petrobras e o valor de mercado da empresa atingiu seus picos históricos”. A política do ex-presidente Pedro Parente, de repasse imediato e direto das variações da cotação externa do petróleo aos derivados vendidos em reais no País, provocou a greve dos caminhoneiros e a queda do tucano no primeiro semestre.
“Abrir mão do controle da atividade de refino retira do País a capacidade de realizar uma política de preços de combustíveis que não seja a de livre flutuação. Em outras palavras, limita a possibilidade de estabelecer mecanismos de amortecimento de impactos dos preços de petróleo e do câmbio utilizando, ao menos em parte, os excedentes obtidos na etapa de produção. Além de retirar um instrumento estratégico, é armadilha perigosa, pois somos uma economia que sofre com ampla volatilidade cambial e, nos últimos anos, os preços de petróleo vêm enfrentando grande volatilidade”, chama atenção o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Facamp, de Campinas.
O tabelamento do frete decidido por Temer para debelar greve de 2017 não resolveu o problema, mostra a ameaça de nova greve dos caminhoneiros, que na segunda-feira 10 interditaram trechos de rodovias no Rio de Janeiro e em São Paulo contra a decisão do ministro do STF Luiz Fux, que suspendeu a cobrança de multas a empresas que não cumpram o acordo de pagamento mínimo estabelecido na tabela do governo.
Ou seja, vender o que ainda resta da estrutura verticalizada formada por firmas controladas encarregadas do transporte, refino e distribuição para restringi-la às atividades de prospecção e extração de petróleo e gás. Um mau caminho, pois, como explica Ruas, embora desde os anos 1970 a produção de petróleo seja a atividade mais lucrativa do setor, possuir ativos na etapa de refino e distribuição permite às grandes companhias auferir receitas estáveis e positivas ao longo do tempo, enquanto aquela é mais volátil e dependente dos ciclos internacionais de preços.
Queridinho do mercado, Parente depôs na terça-feira 11 à Justiça Federal de São Paulo como réu em ações populares movidas pela advogada Raquel Sousa, da Federação Nacional dos Petroleiros, por venda sem licitação da Termobahia, do Campo de Lapa e de parte do Campo de Iara, no pré-sal da Bacia de Santos, e da Transportadora Associada de Gás, controlada da Petrobras proprietária de gasodutos com 4,5 mil quilômetros de extensão no Norte e no Nordeste. A venda irregular foi feita para a Total, petroleira francesa com alentado histórico de corrupção. O próximo a depor nos mesmos processos será o sucessor de Parente na presidência da companhia, Ivan Monteiro.
Bolsonaro e seu ministro da Fazenda Paulo Guedes dizem que a privatização visa baratear os combustíveis, mas não mostram dados para demonstrar sua afirmação. Números da própria Petrobras provam, no entanto, que o custo médio do refino no País, em torno de 2 dólares o barril, é inferior ao obtido nas suas sucursais externas, na casa dos 3 dólares, afirmou Paulo Cesar Ribeiro Lima, ex-funcionário da estatal e ex-consultor do Congresso, em audiência pública sobre o tema na Câmara na terça-feira 4. Não é o único problema. “A Petrobras, se você quiser vender porque é privatista, então venda, mas como empresa integrada, verticalizada.
gora, não faça isso, não desverticalize e não tire o refino, não tire os dutos, não tire os terminais, porque com isso ela perde valor. Se a Shell, a ExxonMobil ficarem sem o refino, sem a distribuição, elas também perdem valor”, disparou Lima. “Enquanto o mundo todo diversifica com distribuição, refino, petroquímica, química, geração de energia elétrica, a empresa brasileira vai na linha de concentração, só quer dedicar-se à exploração e à produção e com foco no pré-sal. Se a Petrobras quiser acabar, eu diria que esse plano de negócios e gestão é muito bom, porque vai significar o fim da empresa daqui a alguns anos. Agora, se o foco for pela continuidade da empresa, a sua administração está na contramão do que ocorre no mundo”, acrescentou.
Os EUA, disse, produzem 13 milhões de barris por dia e têm um parque de refino de 18 milhões. A China, com uma produção de 3,85 milhões, tem uma capacidade de refino de 14,51 milhões, maior do que o consumo chinês, que é gigantesco, de 12,80 milhões. Na Rússia, o volume da estrutura de refino é o dobro do consumo e só é menor que a produção porque a Rússia é grande exportadora.
O Brasil, entretanto, tem um parque de refino de 2,29 milhões de barris ante uma produção 2,73 milhões, enquanto o consumo de derivados é de mais de 3 milhões. “A importação de 800 mil barris de petróleo por dia não faz o menor sentido. Deve-se em muito à capacidade ociosa das refinarias da Petrobras, para a qual também não existe justificativa técnica”, sublinhou Lima. As grandes petrolíferas mundiais, a exemplo da ExxonMobil e da Shell, têm estrutura verticalizada e capacidade de refino maior que a de produção.
A complacência de boa parte da sociedade diante do desmonte e venda da Petrobras reflete um trabalho sistemático da mídia. “A empresa sofreu um ataque severo ao longo dos últimos anos na imprensa. Seu nome foi associado à corrupção de maneira muito agressiva e hoje uma parte importante da população acredita que sua privatização ou redução de sua força econômica possa trazer algum benefício ao país. Esse contexto abriu espaço para políticas que nos colocam, mais uma vez, na contramão da história. Enquanto todos os Estados Nacionais estão protegendo suas empresas estratégicas e de infraestrutura, nós nos esforçamos para entregar as nossas”, aponta Ruas.
Há um enorme engano da opinião pública, concorda Lima. “A gente acha que as privatizações e os desinvestimentos da Petrobras são importantíssimos, que sem elas não há a redução da dívida, mas não é nada disso. A grande fonte de recursos é a geração operacional de caixa projetada pela empresa em 158 bilhões de reais de 2017 a 2021, enquanto essas privatizações totalizam apenas 19 bilhões, valor pequeno nesse total de recursos gerados. Há uma ânsia para reduzir a alavancagem (dívida em relação ao capital próprio) em curtíssimo prazo se desfazendo de ativos estratégicos, o que tecnicamente não faz o menor sentido.”
Os 27 bilhões de dólares angariados até agora com a venda às pressas de ativos prejudicaram a companhia em nome da suposta urgência de reequilibrá-la financeiramente. Além disso, esse resultado retira qualquer justificativa para prosseguir no chamado desinvestimento. Várias das privatizações são absurdas, caso da venda da transportadora de gás Nova Transportadora do Sudeste, NTS, que lucrou 3 bilhões de reais em 2015, para a canadense Brookfield, em abril, por 17 bilhões. Por conta da transação, a Petrobras terá de pagar no mínimo 2,97 bilhões anuais pela utilização da rede completa que antes lhe pertencia. A NTS detém autorizações para operar 2 mil quilômetros de gasodutos na Região Sudeste e toda sua capacidade de transporte, de 158 milhões de metros cúbicos por dia, está contratada pela petroleira brasileira. Os lucros do novo braço da Brookfield deverão triplicar após a entrada em produção dos campos gigantes do pré-sal, preveem vários analistas do mercado de capitais. O caso da NTS resume bem o tipo do interesse que dá rumo à dilapidação da empresa pública.
Revista Carta Capítal