Por que o projeto de privatização dos Correios não faz sentido



Por que o projeto de privatização dos Correios não faz sentido

Há seis dias, os trabalhadores dos Correiros seguem a greve contra a retirada de direitos e risco de vida dos funcionários durante a pandemia do novo coronavírus. De acordo com a categoria, em todo o país são cerca de cerca de 70 mil trabalhadores que aderiram a mobilização, o que representa 70% de adesão a paralisação.

Estão entre os pontos em que houve cortes: o tempo de licença-maternidade de 180 dias para 120 dias; o pagamento de adicional noturno e de horas extras; a indenização por morte; o auxílio para filhos com necessidades especiais e o auxílio-creche.

Para a categoria “o ataque aos direitos” e a redução, de forma unilateral, de 70 dos 79 pontos do acordo coletivo, após a empresa obter liminar na justiça, tem uma “linha direta” com a privatização da estatal, pautada pelo governo Bolsonaro desde o início de seu mandato. Como explica o secretário-geral da Federação dos Trabalhadores em Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Fentect), José Rivaldo da Silva, o objetivo por trás dos ataques está: "tornar a empresa mais leve, porque rentável já é. Mas diminuir todo o passivo trabalhista para privatizá-la, entregar à iniciativa privada a empresa mais barata,  e sem compromisso em assumir os Correios, poderá demitir, pagar indenizações menores aos funcionários”.

A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), aliada do governo Bolsonaro e da privatização da estatal, chegou a afirmar em um vídeo nas redes sociais crítico aos trabalhadores que, antes da privatização dos Correios, é preciso “melhorar para vender”.

Nesse cenário, voltaram aos noticiários as declarações do governo federal, apoiadores e mercado apontando as intenções de privatizar a estatal. Em meio a tantas versões sobre as razões para a venda dos Correios, o Brasil de Fato se debruçou sobre algumas delas para explicar o que está em jogo no serviço postal brasileiro.

Correios não têm capacidade financeira?

O diretor da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) e general da reserva do Exército, Floriano Peixoto, em entrevista a revista Veja, em julho desde ano, afirmou: “Alguns benefícios estão sendo cortados porque a empresa não tem capacidade financeira nem condição de se sustentar, perante a sociedade, a preservação deles  (benefícios) em um momento tão difícil”

::Artigo | Trabalhadores denunciam Correios por suspender acordo coletivo na pandemia::

Segundo o economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clovis Scherer, os dados do relatório administrativo da empresa mostram que só em 2019 ela teve receita líquida de R$ 18,356 bilhões. E registrou lucro líquido de R$ 102,121 milhões. A empresa fechou 2019 com 99.443 funcionários, ante 105.349 no ano anterior (-5,61%).

Para ele, o lucro positivo nas contas operacionais é porque houve um bom resultado entre receitas e despesas ligadas à operação da empresa "do lado dos gastos principalmente de salários, benefícios, encargos sociais".

"Não existe nenhuma explosão de gastos, nenhum desequilíbrio, muito ao contrário. Nos últimos dois anos, temos resultados num patamar de gasto com pessoal, inclusive em cargos sociais, inalterado dentro da média histórica”, explica.

Correios dão prejuízos?

Descontado o custo dos produtos e serviços prestados, o lucro bruto aumentou em mais de R$ 200 milhões nos últimos dois anos, atingindo R$ 2,7 bilhões em 2019.

Os números contradizem também o argumento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que em janeiro deste ano disse: "Até o próprio Correios, que a gente quer privatizar, mas tem dificuldade. O monopólio, que, até o ano retrasado, deu prejuízo. A gente pretende. Se pudesse privatizar hoje, eu privatizaria”.
 
Com o aumento da demanda de compra online em meio a pandemia, a estimativa é que a empresa tenha um lucro ainda maior este ano. De acordo com o secretário-geral da Fentect, a estatal teve um aumento do volume de entregas de mais de 30%.

Outro ponto levantado por Silva é que, diferente de outras estatais, a empresa se sustenta e não é dependente do Tesouro Nacional.“O governo não põe  recursos, a produção toda é feita pelos trabalhadores”, declara ele.

Impacto para os trabalhadores

Se comparado com ano retrasado, o valor de despesas com salários, honorários e benefícios cresceu apenas 0,1% em 2019, mas, segundo o levantamento do Dieese, para os trabalhadores, os cortes nos direitos podem representar de 43% a 69% de rendimento no final do mês. O que para Scherer é uma liquidação do acordo coletivo, que pressupõe os benefícios como complemento do salário, em uma atitude “extremamente irracional e irrealista”.

“Além de não promover ajuste salarial, causando uma perda no poder aquisitivo dos trabalhadores, elimina o anuênio, a gratificação de férias, que fica limitada à legislação, de um terço, não vai garantir o vale alimentação e/ou refeição que os trabalhadores têm hoje. Só ai gera uma perda de renda e poder de compra que ultrapassa R$ 800 para cada trabalhador”, calcula. 

Por exemplo, um carteiro, atendente ou operador de triagem que ganham uma média de  rendimento líquido de R$ 4.058 com esses benefícios, com a proposta da empresa o valor  líquido cairia para R$ 2.860. Uma perda só para ele de R$ 1.200 com a inexistência do acordo. O que significa uma renda de quase 43% na remuneração líquida desse trabalhador ou trabalhadora.

No caso de um trabalhador assistente administrativo cuja a média de remuneração bruta é R$ 2.300, a perda também é de R$ 1.200 aproximadamente, o que significa uma perda de 69% na sua remuneração líquida com esses benefícios. 

Por isso, o representante da Federação reitera que a categoria não está fazendo greve por benefícios, mas pela manutenção dos direitos estabelecidos pelo acordo coletivo, inicialmente previsto para valer até 2021. Para ele, o pedido é apenas que o "governo pague o que já paga".

Ninguém lê mais carta?

 “Qual a dúvida em privatizar os Correios? Ninguém escreve mais cartas”, afirmou o ministro da Economia, Paulo Guedes, ao defender a inclusão da estatal no Programa de Aceleração de Privatizações (PAP).

O dirigente da Fentect afirma, no entanto, que segundo dados da empresa, mais de 48% da receita corresponde ao monopólio postal de envio de cartas e os outros 52% a entrega de encomendas, aberta a livre concorrência.

Monopólio dos Correios

Silva já responde outro argumento utilizado frequentemente para justificar a privatização, a exemplo, do que disse o deputado federal, Marcel Van Hattem (Novo/RS), durante audiência pública sobre os Correios: “Uma empresa monopolista estrangula qualquer possibilidade de concorrência”.

O monopólio dos Correios se limita apenas ao serviço de cartas e está previsto na Constituição para a garantia do direito ao serviço postal de todos os brasileiros. Já o serviço de encomendas, como Sedex e PAC, está aberto para o livre mercado, e ainda assim, de acordo com os dados da estatal, apresenta bons resultados.

Scherer alerta que a privatização das áreas competitivas da empresa pode matar todo o conjunto de serviços que são prestados, inclusive aqueles do monopólio. “Você não vai montar uma estrutura no Brasil inteiro para entregar carta se não tiver junto outros tipos de serviços que, justamente viabilizem economicamente o funcionamento da empresa; ela não vai ter receita suficiente para arcar com a tarefa de entregar cartas no Brasil inteiro”, explica.

Logística

A questão vai de encontro a outra fala do parlamentar gaúcho: “Não é em virtude de ser estatal que as coisas chegam nos longínquos do Brasil”

O fato é que o interesse de grupos privados é apenas por agências que abrangem capitais ou grandes municípios, que apresentam serviços superavitários, deixando de lado as agências localizadas em cidades onde a atividade não é lucrativa. Mais uma vez, cabe lembrar que essas localidades são atendidas exclusivamente pelos Correios e, o mais importante, sem aporte de recursos da União.

O dirigente da Fentect reitera: “A privatização para os trabalhadores é a demissão e para a população é o aumento das tarifas e não ter a certeza que quem mora em determinadas regiões vai poder receber o que comprar via internet, porque vai ficar muito caro e inviável você mandar encomendar por quem for operar no mercado privado, que só visa o lucro. No caso, o governo vai entregar o filé para iniciativa privada ou tentar assumir minimamente o atendimento e o direito das pessoas a ter um acesso à correspondência”.

Falta de qualidade?

Além do serviço postal, os Correios servem como banco postal, entregam vacinas, realizam o ENEM, exportam e importam, levam informação, emitem documentos, entre outros. Muitos desses serviços não geram lucros, apesar da empresa ser, sim, lucrativa. 

Silva destaca que a posição estratégica dos Correios na logística integrada no país inteiro ficou evidente na pandemia e pode, inclusive, ser um diferencial na distribuição da vacina da doença, por exemplo.

Em 2019, a empresa ganhou o Prêmio ABComm de Inovação Digital 2019, um dos mais relevantes do e-commerce brasileiro, organizado pela Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) e, em 2020, venceram o World Post & Parcel Awards, prêmio internacional considerado o ‘Oscar’ dos correios de todo o mundo.

Para a categoria, o resultado poderia ser bem melhor não fosse o enxugamento da empresa que diminui e envelhece a estrutura física, prejudica as condições de trabalho, derruba a qualidade quanto a rapidez e garantia das entregas. Desde 2011 não há concurso e contratação e ano passado o general Floriano Peixoto chegou a comandar um Programa de Demissão Voluntária (PDV). Mas a quarentena imposta pela pandemia criou condições para o lucro crescer ainda mais, visto que o comércio eletrônico e o volume de encomendas cresceram.

“Galinha dos ovos de ouro”

Ano passado o total de receitas, 22,1% vem de serviços de Sedex e 21,3%, do PAC. Havia 11.124 unidades de atendimento, sendo 6.071 agências próprias e 5.053 terceirizadas. Para o economista a área das encomendas é justamente onde a empresa mostra que é competitiva e pode ser “a galinha dos ovos de ouro”.

“Nós temos bons números, principalmente no segmento de encomendas, que é muito rentável. A empresa tem uma operação lucrativa no segmento de encomenda e também na logística. Isso é fundamental, principalmente agora que vamos observar todo esse desenvolvimento do comércio digital. É um momento que, quem tem interesse econômico em comprar a empresa, pode pegar uma galinha dos ovos de ouro”, pontua Scherer.

Guedes no mesmo pronunciamento acaba evidenciando que há grande interesse no mercado na empresa: “Por que tem que demorar tanto? Tem oito caras querendo comprar [os Correios]” - disse.

O interesse se dá porque os Correios executam uma atividade estratégica e comércio digital cresce em importância, como avalia o representante do Dieese. “Entregar a logística do Brasil com seu principal operador a um agente privado é uma decisão que tem que ser ponderada do ponto de vista estratégico do futuro. O Estado brasileiro perderia completamente a capacidade de influenciar uma cadeia que, no futuro, vai se tornar como a Amazon”, ressalta.

Outros países fizeram movimentos no sentido de fortalecer e expandir a atuação das suas empresas postais, inclusive, com atuação internacional e não enfraquecer. Por exemplo, França, Holanda e a Argentina, que reestatizou o serviço postal.

Não a toa, o dirigente sindical enfatiza que a luta contra a privatização faz parte da luta dos trabalhadores. “É uma empresa que pode ser gigante no Brasil, não pode abrir mão de uma empresa dessa”.

Na rede, representantes da categoria e diversas organizações puxam o movimento, definido como suprapartidário, Correios, orgulho de um país inteiro em defesa da estatal. 

Por Marina Duarte de Souza, Brasil de Fato/ São Paulo (SP)

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