“A poesia também durante muito tempo foi tida como uma coisa sem utilidade por algumas pessoas. Mas a gente acha que a palavra tem utilidade. E é muito louco você imaginar que esse mesmo povo, que nunca teve acesso a uma educação de qualidade pelo governo, nunca teve acesso à cultura, nunca teve acesso ao lazer, ao esporte, se descobriu através da poesia”, enfatiza Sérgio Vaz, conhecido como o Poeta da Periferia.
Nascido em Ladainha, interior de Minas Gerais, o poeta foi criado na periferia da zona Sul da cidade de São Paulo e deu início a um movimento que transformou em centro cultural, um bar da região, onde acontece o Sarau da Cooperfia (Cooperativa Cultura da Periferia), fundada por Vaz.
Autor do projeto “Poesia Contra Violência”, que percorre escolas públicas da periferia de São Paulo (SP), ele fala da importância da escola pública. “É uma coisa que eu adoro fazer, e eu me realizo ali, ao lado dos professores, sempre pedindo licença para estar ao lado dessa luta tão grande, que é a educação pública”.
Sérgio Vaz foi um dos homenageados da 13ª edição da Festa Literária de Porto Alegre, realizada de forma hibrida, em maio deste ano. Ele voltoua à capital gaúcha de forma presencial no Diálogos Contemporâneos, na quarta-feira (10).
O escritor tem oito livros publicados, entre eles Subindo a ladeira mora a noite (1988), A margem do vento (1991), A poesia dos deuses inferiores (2005) e Cooperifa Antropofagia Periférica (2008).
Sérgio nasceu em 1964, ano em que começa a ditadura militar no Brasil.
O Brasil de Fato RS conversou com o poeta, cronista e produtor cultural que falou sobre o papel da poesia no contexto que estamos vivendo.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS: Em 2000 tu criaste a Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa). Em 2007, foi o responsável por criar a Semana de Arte Moderna da Periferia, inspirada na Semana de Arte Moderna de 1922. Idealizou outros eventos, como a Chuva de Livros; o Poesia no Ar e A joelhaço, em que homens se ajoelham na rua para pedir perdão às mulheres no Dia Internacional da Mulher. Como tem sido desenvolver esse trabalho?
Sérgio Vaz: Primeiramente, a gente tem um grupo muito forte de pessoas que realmente acreditam que a gente pode mudar a periferia, ou tentar mudar, através da literatura. Foram estratégias que nós criamos para poder atrair as pessoas da periferia para a literatura, para a poesia, para o conhecimento, de uma forma simples, como deve ser a literatura.
Qual é o papel da poesia no Brasil do negacionismo e dos 610 mil mortos pela covid-19?
O papel da arte também, como diria Paulo Freire, é anunciar e denunciar. A literatura periférica muito antes desse governo que aí está já estava denunciando tudo o que acontece. De alguma forma a poesia se apropriou da utilidade que as palavras têm pra denunciar tudo isso. Então, o papel da gente é continuar escrevendo sobre tudo aquilo que acontece, e que aconteceu no país.
A poesia percebe o que está atrás das coisas, aquilo que o olhar não alcança. O que é preciso descobrir no Brasil de hoje e que a poesia pode ser instrumento dessa descoberta?
De alguma forma esse Brasil de hoje é o Brasil de sempre para nós negros e pobres. A nossa realidade não começou agora nesse governo, é desde sempre. E, às vezes tem pessoas que leem aquilo que a gente escreve, leem hoje e dizem que ela faz muito sentido. Mas já fazia sentido para nós há 20 anos atrás, a pobreza, o desemprego, o racismo, a intolerância religiosa. Todas as coisas que estão escancaradas, de alguma forma, o Hip Hop já vinha denunciando, o movimento negro já vinha denunciando, a literatura periférica também vinha denunciando.
Então a gente está continuando a fazer o que a gente sempre fez, com poucos recursos, com pouco apoio, com o descaso da sociedade, com o descaso da mídia, com o descaso da livraria. A novidade é continuar trabalhando, reclamar como sempre e agir como nunca. Então a gente tá agindo como nunca, e reclamando como sempre.
Como manter viva a poesia nas periferias em um contexto marcado pela fome e a carestia, desemprego, violência?
Nós precisamos dessa dose de poesia, de utopia, para que a gente possa continuar vivendo. Não é a poesia que vai mudar o país mas, de alguma forma, essa poesia que a gente fez, instigou muitas pessoas a chegar até o livro, a chegar até o conhecimento. Muitas pessoas que frequentavam os saraus que acontecem em São Paulo, o Sarau da Cooperifa e tantos outros que acontecem por aqui. Foi ali, nessa roda de poesia, nessa roda de conversa, que muita gente descobriu o que estava acontecendo no país. Muita gente voltou a estudar porque entendeu que ali, ouvindo a poesia, ela poderia mudar a sua realidade, e de alguma forma mudar o país através da sua atitude.
A poesia também, durante muito tempo, foi tida como uma coisa sem utilidade por algumas pessoas. Mas a gente acha que a palavra tem utilidade. É muito louco você imaginar que esse mesmo povo, que nunca teve acesso a uma educação de qualidade pelo governo, nunca teve acesso à cultura, nunca teve acesso ao lazer, ao esporte, se descobriu através da poesia.
Eu acho que o que a gente está fazendo é esse trabalho de base, conversando com o povo, falando de livros, de literatura. A literatura não é mais o pão do privilégio, e nós conseguimos dessacralizar a literatura. Não é o povo que pede licença para fazer poesia, é a poesia que pede licença para ser pronunciada. E nós fizemos de uma forma, como os nossos ancestrais, através da oralidade.
No Sarau da Cooperifa, a pessoa faz a gentileza de recitar um poema, e a pessoa faz a gentileza de ouvir, e nessa troca de gentilezas entrou a literatura. Então, a gente deu utilidade para as palavras, a gente não está falando só das estrelas, a gente está falando do racismo, da fome, da intolerância religiosa, do feminismo, do fascismo. Está falando de tantas outras coisas, que agora estão na boca do povo, mas que sempre esteve na boca do povo pobre, do povo negro.
Há pouco tempo viralizou uma sentença que a juíza gaúcha Karla Aveline de Oliveira deu na 4ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude, em que ela iniciava com a tua poesia A Vida É Loka. Fizemos uma entrevista com ela que teve uma visualização muito grande. Na sua decisão, Karla usou a poesia para justificar como a desigualdade social, a violência e o desamparo do Estado tornam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em alvos de organizações criminosas e do trabalho infantil. Como foi para ti, ver a tua poesia numa sentença judicial inédita em que ela negou acusação por tráfico de drogas do Ministério Público contra adolescente?
Eu fiquei muito feliz, porque a poesia talvez seja tratada como todos, como subliteratura. E você perceber que a poesia que fez tem utilidade, que ela pode interferir, ajudar pessoas a melhorar o país, vi como uma vitória pra mim, que escrevo há muito tempo falando dessas coisas. Eu vi assim: a literatura pode ajudar, não ser uma coisa só de reflexão pessoal, mas também pode ter essa utilidade. É dessa utilidade que eu falo, que eu acho que é muito importante.
Quando a sua poesia atinge uma outra pessoa, faz ela refletir sobre o momento que vive, que está vivendo, faz ela acreditar, ter esperança e faz ela ter raiva também. Porque quando a gente descobre realmente porque vive nesse lugar, a gente descobre que nós somos marionetes, mas nós enxergamos as cordas.
Acho que a poesia, nesse caso, foi fundamental pra ajudar na justiça, para as pessoas entenderem realmente o que nós passamos aqui. Porque a gente não escreve para a periferia, a gente escreve com a periferia. Eu acho que isso que nos diferencia um pouco, não é melhor nem pior, mas é a nossa literatura.
A tua mesa no evento Diálogos Contemporâneos aborda a literatura que vem da periferia. Nesse campo temos Carolina Maria de Jesus, o próprio José Falero que irá mediar tua mesa, para citarmos como exemplo. Gostaria que nos falasse sobre essa criação que vem desses lugares.
Eu acho que eu aprendi muito com a cultura Hip Hop, no final dos anos 1990, início dos anos 2000. Quando eu percebi esses jovens negros e periféricos, dizendo coisas que há muito tempo eu não ouvia na literatura, muito tempo eu não ouvia na música, uma forma direta, um papo reto, sem metáforas. Que fez com que eu também conhecesse Carolina de Jesus, que trouxe pra nós pessoas como Lima Barreto, Maria Firmino. Você falou José Falero, agora no Rio Grande do Sul também há Jeferson Tenório, teve o Oliveira Silveira, Solano Trindade. Acho que essa literatura nos representa de uma forma muito forte, pela palavra, pela atitude, pela força, pela gana.
Então eu acho que é isso, que nós vamos falar, de onde a gente vem, porque a nossa inspiração vem das pessoas. Quando a gente olha as pessoas, a gente olha sua expressão, seu jeito de andar, a sua linguagem corporal, olha nos olhos, e a gente sente que ali tem muita história.
A nossa inspiração vem da rua, do povo brasileiro, dessas pessoas que se esmagam no trem, se esmagam no ônibus, em troca de um salário indigno. Acho que essa literatura representa isso, de uma forma direta, sem atravessadores. A gente queria contar um pouco a nossa história, porque de alguma forma a gente sempre ouviu ela sendo contada de uma forma caricata, exótica. E aí nós começamos a contar a nossa história. Não é nem uma afronta à literatura brasileira, somos nós que queremos contar nossa história.
A gente não quer ser mais um leão do zoológico, a gente quer ser o leão da selva, passa fome, às vezes não janta, às vezes não almoça, mas tem a liberdade. Então a nossa literatura fala um pouco disso, dessa coisa de denunciar e anunciar que fala Paulo Freire.
A gente tem visto crescer esse movimento nas periferias, do Hip Hop, slam, os saraus. Aqui no estado tem o Sarau das Minas, que é um sarau de mulheres, enfim. Como tu está enxergando isso, tem crescido mesmo esse movimento? Isso é mais centrado em SP, ou no resto do Brasil também?
O movimento de poesia é muito forte, as pessoas começaram a se apropriar da palavra e a poesia é uma coisa muito simples. A gente faz o Sarau da Cooperifa num bar. Toda a periferia do Brasil tem bar. Então as pessoas começaram a ocupar o bar, e ressignificá-lo, porque o bar na periferia também é um lugar onde as pessoas se reúnem depois do trabalho, se reúnem antes dos jogos de futebol de várzea, se reúnem pra discutir o asfalto, a luz, o esgoto, a reunião da sociedade amigos de bairro.
E as pessoas começaram a usar a própria voz, a oralidade, para falar dessas coisas, já que é tão difícil a gente publicar um livro, conseguir uma grande editora. Então isso se espalhou de uma forma avassaladora, e cresceu também porque as pessoas não se importaram muito com a gente, não deram visibilidade para aquilo que estava sendo feito. E foi fácil fazer dessa forma, sem muita interferência, sem muita gente dizendo como tem que ser, como gostaria que fosse, e a gente foi fazendo desse jeito. E ela foi se espalhando, porque é muito simples fazer um sarau, um slam. Todo lugar que eu vou no Brasil, tem um slam, tem um sarau inspirado em outros saraus, e assim vai indo.
O João Cabral de Melo, o poeta, fala: "O galo quando canta acende outros galos que cantam também nos seus quintais". Então eu acho que é isso, foi inspirando outras pessoas através da palavra.
No dia 6 de novembro teve o lançamento do teu livro Flores de Alvenaria em espanhol, no Festival Internacional de Poesia de Rosário, na Argentina. O que significa esse romper fronteiras?
Foi uma alegria muito grande, porque o festival de poesia de Rosário já é uma coisa conhecida na Argentina, e eles olharem pra cá e de alguma forma reconheceram o meu trabalho. A Lucía Tennina que fez a tradução para Milena Caserola, é uma pessoa que já fez um mestrado aqui sobre saraus. Eu fiquei muito feliz de poder atravessar a fronteira, de poder levar um pouco do que a gente fala aqui, do que a gente faz aqui, para a Argentina. E de alguma forma se conectar com pessoas lá que estão passando pelo mesmo perrengue que a gente no Brasil.
Os lugares onde criaram muros a gente está criando pontes. Então eu fiquei muito feliz, surpreso, porque eu falo de um lugar assim longínquo, que é a periferia de São Paulo.
Mas eu achei que foi um pulo muito grande, e fiquei feliz, depois de 33 anos de poesia, alguém se interessar em traduzir para o espanhol. E fiquei muito feliz também no lançamento, ouvir as pessoas recitando aquilo que eu escrevi em espanhol, emocionado, porque eu acreditei nisso desde sempre, investi nisso toda a minha vida, na palavra, na literatura, no livro. Então eu estou me sentindo muito honrado, não sei se eu mereço, mas eu estou agradecendo sempre.
Este ano completa 50 anos do reconhecimento do 20 de Novembro como o Dia da Consciência Negra. Pra ti, qual a importância dessa data, principalmente hoje, e como tu pretende trabalhar essa questão nesse mês?
Acho que essa é uma luta constante de todos os dias. A gente reclama que muitas vezes é só nesse mês que as pessoas chamam os negros e negras para trabalharem, de reflexão, mas é a nossa luta, ela é diária. Esse mês não será diferente de setembro, de outubro. Nós estamos fazendo sempre essas ações pra tentar conscientizar o povo, a luta contra o racismo. A Coalizão Negra diz: "Com racismo não há democracia". Então é uma luta constante. Esse mês até tem mais trabalho do que os outros dias, por conta desta data, mas é importante as pessoas se ligarem no que está acontecendo, que é uma luta constante.
"O mundo gosta das pessoas neutras, mas só respeita as que tem atitude". Quais atitudes necessitamos hoje pra enfrentar o racismo e a desigualdade social?
A atitude que nós estamos fazendo é transformar as pessoas através do conhecimento, do livro. Os jovens negros e periféricos até pouco tempo atrás, devido esse retrocesso que estamos tendo na educação, estavam entrando nas universidades. E nas universidades estavam levando escritores e escritoras que eram desconhecidas.
A atitude é a gente começar a mudar a própria vida, começar a entender como funciona essa engrenagem, e como a gente tem que lutar. E não se trata de meritocracia, mas é de superação, da gente transformar as nossas vidas de alguma forma coletiva, mas pensar no individual também.
Não tem como não lutar, não tem como não acordar de manhã e saber que o mundo é contra tudo aquilo que a gente pensa. É utopia ou barbárie, nós somos utópicos, as pessoas querem acreditar, e quem tem utopia, já dizia Eduardo Galeano, não para.
Estamos vivos, apesar de tudo, poder dizer que está vivo nesse país é um castigo, mas as vezes é um privilégio.
Acho que é disso que nós estamos falando, de lutar todos os dias, essas atitudes pequenas. Por exemplo, hoje eu estava numa escola pública, falando de incentivo à leitura, fazendo oficina de poesia, trabalhando na base com jovens, conversando com jovens. Quem vai conversar com os jovens, além dos professores e professoras, em situações precárias?
Eu acho que a função do artista é ser cidadão também, de trocar ideias, de ver como eles estão pensando, de estar lado a lado com a educação, com o conhecimento.
Então mudar pra mim é estar nesses lugares, a gente tem projetos, futebol de várzea, de levar a várzea para o sarau, de fazer trabalho, de montar uma biblioteca comunitária como nós montamos. Acho que são essas atitudes que a gente tem que fazer.
Tu já conhece Porto Alegre?
Conheço, já fui muitas vezes, tenho amigos e amigas aí. Estou muito ansioso, porque faz muito tempo que eu não vou. E agora que é presencial, estou muito emocionado. Estamos vivos, apesar de tudo, poder dizer que está vivo nesse país é um castigo, mas as vezes é um privilégio.
E vai conseguir visitar a Feira do Livro de Porto Alegre?
Eu gosto muito dessa feira do livro, porque é numa praça, uma feira ao ar livre, pública, onde as pessoas podem passar. Geralmente nessas feiras são cobrados ingressos, estacionamento, dificulta. É uma feira muito charmosa, muito importante. Ela vai estar acontecendo até quarta-feira também, né?
Até a próxima segunda-feira, dia 15.
É, então, eu quero visitá-la, já estive aí na feira em eventos.
Pode nos falar um pouco mais sobre essas palestras e esses encontros nas escolas, como é a recepção dos estudantes?
No começo, quando eu fui na primeira escola muitos anos atrás, eu fui a convite de um amigo professor, para falar, e eu não sabia falar. Ainda não sei, mas eu não sabia direito o que eu ia falar, como eu ia conversar. Mas eu lembro que um jovem perguntou: "Professor, como ele pode ser escritor, se todo escritor já morreu?"
E aquilo bateu muito forte, imaginar que a visão que os jovens têm do escritor é que ele já morreu. E talvez ele não estivesse totalmente errado, porque grande parte já morreu apesar da sua importância, e talvez muito eles não irão conhecer.
Aí eu fiquei pensando, puxa, eu escrevo com a periferia, escrevo sobre isso, e será que eu vou ter que morrer para eles conhecerem o meu trabalho? E comecei a pedir para os meus amigos e amigas professoras para me convidar, e não parei mais.
E indo nas escolas, eu que estudei muito pouco, percebi que eu tinha voltado a estudar também. Comecei a reconhecer o valor da educação pública, do professor e da professora, da escola. Como ela faz aquele trabalho, como eles lutam, como eles resistem. E descobri também que o jovem quer estudar, o jovem quer cultura, quer educação, e muitas vezes é só a rebeldia.
É muito importante a gente falar de literatura, falar de arte na base, falar com essas pessoas, com essas crianças. Entender como é que eles querem receber a literatura, como é que eles entendem de poesia, o que eles estão falando, como estão pensando.
Foi muito importante para mim como pessoa, como ser humano, entender esse mecanismo. E aí eu entendi a grandeza do professor, ela é muito importante, porque quando eu vou a uma escola, eu fico lá uma hora e meia, duas horas, e aí nesse dia o aluno pensa: "Ah, eu não vou ter aula". Então eu me divirto, eu falo poesia, eu planto bananeira, todo mundo gosta, eu não dou nota, eu não faço prova.
Mas eu tenho que mostrar pra eles que o meu trabalho é legal por causa dos professores, por causa das professoras, que têm coragem de colocar isso no quadro, que têm coragem de falar da nossa literatura, têm coragem de mostrar a rua dentro da escola para os alunos dela. Eu vou para colaborar, para ser mais um. Eu posso ser uma peça como artista, como cidadão. Mas eu reconheço que o meu trabalho ele é muito pouco, mas é o pouco que eu tenho, é o pouco que eu levo. E me juntar aos professores é uma honra muito grande, é onde eu renovo as minhas forças, é onde eu aprendo, onde eu entendo.
Eu me tornei um cara mais inteligente depois que eu voltei para as escolas. Então eu também quero um diploma. Como eu aprendi, quando voltei a sentar naquele lugar e sentir como é importante esse lugar na periferia. Esse lugar que tem a comida, que tem acolhida, que a gente, às vezes, não tem um quarto em casa, e lá tem um quarto com todos os nossos amigos em volta. E aí eu lembrei de como é importante a adolescência, e eu lembro como eu fui burro em ter parado de estudar.
Então para mim é uma coisa muito grande, é uma coisa que eu adoro fazer, eu me realizo ali, ao lado dos professores, sempre pedindo licença para estar ao lado dessa luta tão grande que é a educação pública.
Como tu te descobriu poeta?
Eu leio desde sempre, e eu sempre me achei um cara meio fora da caixa, ainda que eu não saiba o que é a caixa, ainda que eu esteja dentro da caixa. Mas de alguma forma, eu que venho dos bailes blacks, eu que curti música popular brasileira, Chico, Caetano, Elis, Nana Caymmi, Luiz Melodia. Eu que acompanhei o Hip Hop, acompanhei esse movimento, essa cultura.
De alguma forma, eu falei assim: eu acho que eu vou começar a escrever umas coisas que eu penso, e eu também tinha preconceito com a poesia. Tinha um grupo de música de uns amigos que eu acompanhava, que me deixavam ficar ali presente, porque eu não sabia nem cantar e nem tocar. E no meio dessa confusão alguém falou, olha, vamos fazer o seguinte: "A gente faz as letras aqui, mas elas ficam muito confusas, porque todo mundo quer dar opinião". E aí me elegeram o letrista da banda, eu comecei a pensar em poesia, comecei a me interessar por Pablo Neruda, o poeta chileno. Conheci Solano Trindade, e a poesia entrou em mim.
Foi dessa forma, através da música, e eu uso a música hoje para falar com jovens sobre poesia, para dessacralizar a poesia, tirar ela do pedestal. A poesia para mim é quando ela desce do pedestal e beija os pés da comunidade. Tinha que tirar essa roupa elegante, essa palavra sofisticada. A poesia se apresentou assim, de forma humilde para mim, lutando contra a ditadura, contra a tirania. Foi assim que eu me interessei pela poesia, sabendo que ela poderia ser um instrumento de luta através das palavras.
É o que a gente faz de alguma forma. A gente que trabalha, sonha com as mãos. Eu sou um cara da praticidade, eu tenho pouca teoria, eu gosto dessa coisa de sonhar, de acreditar. E a gente precisa dividir esses sonhos com as pessoas, nem que sejam poucas as pessoas que nos ouvem, que acreditam naquilo que a gente fala.
Mas a gente tenta, através das atitudes, fazer com que outras pessoas embarquem no nosso sonho. Talvez seja uma forma egoísta, egocêntrica, vaidosa, de se relacionar com o mundo, fazer com que o mundo preste atenção naquilo que você sonha, naquilo que você acredita. E o mais importante é que eu encontrei outras pessoas também que estavam socializando sonhos e enfrentando a realidade. Então eu acho que isto me define muito, e a poesia Teimosia também me define muito, porque ser brasileiro hoje é ser teimoso.
Não são tão poucas pessoas assim, no Facebook são mais de 400 mil seguidores, tem muitas pessoas te ouvindo hoje...
O que falta para nós, eu não sei te explicar, mas parece que falta uma grande conexão. Porque tem muita gente como nós espalhada, gente simples, que talvez não tenha tantos seguidores, talvez não sejam conhecidas. Mas que são tão importantes, que estão no lugar esquecido, às vezes falando para 10, 20, 30 pessoas, que são pessoas tão importantes também, que estão dando corda nessa engrenagem que é a vida.
Eu não sei o que falta, mas eu gostaria de saber, porque tem pessoas maravilhosas nesse país que a gente não conhece e que são tão importantes como nós, que trabalhamos com a palavra, com o jornalismo. Olha o Brasil de Fato, olha o jornalismo que o Brasil de Fato faz, olha os lugares que ele vai, as denúncias que ele faz, as coisas que ele coloca, a preocupação com a cultura.
Então, sei lá, eu fico pensando que uma hora a gente vai se encontrar, o Leminski fala: "Distraídos venceremos". E Mario Quintana fala: "Aqueles que estão atravancando meu caminho passarão, e nós passarinho".
Fonte: Brasil de Fato Rio Grande do Sul, por Katia Marko e Fabiana Reinholz