Ao defender a venda de refinarias e outras subsidiárias da Petrobras sem a necessidade de aval do Congresso Nacional, medida provada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em outubro de 2020, o advogado da estatal, Tales David Macedo, afirmou diante dos ministros da Corte que a privatização é essencial para a saúde financeira da “petroleira mais endividada no mundo”.
A afirmação de Macedo dizia respeito a uma notícia circulada em 2017, quando a Organização Mundial do Comércio (OMC) publicou um informe apontando a estatal como a empresa de petróleo mais endividada do mundo. Já em 2019, porém, o título de petroleira “mais endividada” passou a ser da companhia de petróleo mexicana Pemex, segundo a agência Bloomberg.
Em setembro de 2020, o endividamento líquido da Petrobras era de R$ 373,5 bilhões, o que representava uma queda de 4,2% em relação ao endividamento do fim de junho daquele ano, que ficou em R$ 390 bilhões. Quanto aos lucros, já em 2019, a companhia havia registrado o maior lucro de sua história, de aproximadamente R$ 40 bilhões, devido às descobertas do pré-sal. No quarto trimestre de 2020, o lucro alcançou R$ 59,9 bilhões, mais um recorde.
Especialistas em petróleo, e que já passaram pela Petrobras, reforçam que nem todo endividamento é ruim e seus efeitos precisam ser relativizados. Mesmo assim, o discurso do endividamento é utilizado com frequência, e de forma descontextualizada, por setores favoráveis à privatização da estatal para justificar sua venda, como fez David Macedo diante dos ministros do STF.
Endividamento devido ao pré-sal
Nas palavras de Ildo Sauer, que já foi Diretor Executivo da Petrobras entre 2003 e 2007 e responsável pela Área de Negócios de Gás e Energia, e de Larissa Araújo Rodrigues, doutora em Energia pela Universidade de São Paulo (USP), “a dívida da Petrobras e o mito de que ela está “quebrada” são usados como justificativa para transformá-la em uma empresa de óleo apenas (incluindo o gás natural), com ênfase potencial na exportação de óleo cru”, afirmam no estudo “Pré-sal e Petrobras, além dos discursos e mitos: disputas, riscos e desafios”.
Segundo Sauer, que atualmente é diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, a dívida da Petrobras provém, em grande medida, da necessidade de expandir a planta produtiva para dar conta da descoberta do pré-sal, em 2006. Segundo ele, isso exigiu “um plano auspicioso de investimentos”. Somente entre 2010 e 2014, despendeu-se cerca de R$ 424,65 bilhões, de acordo com o estudo.
Para Paulo César Ribeiro Lima, especialista em petróleo e que trabalhou por 16 anos no Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes), no desenvolvimento de tecnologias para exploração e produção de petróleo em águas profundas, este modelo de investimento que ocorreu na área de exploração e produção em razão da descoberta do pré-sal é “extremamente positivo”.
“Se você descobre uma província com os postos mais produtivos do mundo, mais produtivos do que os da Arábia Saudita, precisa fazer grandes investimentos. A Petrobras está colhendo os frutos do pré-sal. Sua situação sempre foi fantástica, descobriu o pré-sal, nunca esteve quebrada, falida, sempre teve ótima geração de caixa e lucro real. É uma senhora empresa”, afirma Lima, que também já foi consultor legislativo do Congresso Nacional, participando ativamente da construção dos marcos legais do pré-sal.
O resultado dos investimentos, ainda que considerados inferiores em relação ao necessário, foi que, em somente quatro anos, a produção passou de 500 mil barris para 1,5 milhões de barris por dia, impactando positivamente os lucros registrados em 2019 e 2020.
Denúncias de corrupção e política de preços
A outra parte da dívida da Petrobras, segundo estes especialistas, está ligada à gestão da estatal que, por um lado, envolveu casos de denúncias de desvio de dinheiro e, por outro, equívocos no estabelecimento de políticas de preços. Denúncias de desvios que levaram, na esteira da Operação Lava Jato, a partir de 2014, à prisão quatro ex-diretores da estatal: Paulo Roberto Costa (Abastecimento), Renato Duque (Serviços), Nestor Cerveró (Internacional) e Jorge Zelada (Internacional).
Segundo o estudo de Sauer e Rodrigues, somente os investimentos fora dos padrões feitos em unidades como a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (CompeRJ), geraram uma perda de aproximadamente 40 bilhões de dólares.
“Tem uma parte da dívida que veio, por exemplo, do CompeRJ, que deixou de ser complexo e virou uma refinaria convencional. Então, uma parte da dívida realmente é muito negativa, vem de má gestão e que pode estar associada a denúncias de corrupção, e não adianta tapar o sol com a peneira”, avalia Lima.
Quanto à política de preços equivocada, ainda conforme o estudo de Sauer e Rodrigues, houve o congelamento dos valores dos derivados de petróleo para “supostamente” controlar a inflação, gerando um prejuízo de cerca de R$ 100 bilhões. Sobre isso, Lima afirma que a Petrobras cobrava muito acima do mercado internacional ou abaixo. “O que o PT deveria ter feito era uma política pública para o estabelecimento de preços. A gente não sabia se a Petrobras ia subir. Graça Foster (ex-presidente da Petrobras), (a ex-presidente) Dilma Rousseff e (o ex-ministro da Fazenda) Guido Mantega sentavam lá e decidiam o preço, mas não tinha transparência nenhuma, não tinha política pública”, critica.
Em suas palavras, ainda assim, os problemas de gestão e as acusações de corrupção “jamais foram capazes de afetar a estabilidade e rentabilidade da empresa”. Para Lima, “a Petrobras é o principal projeto nacional. O único projeto que é referência no mundo”.
Privatização, PPI e desinvestimento como soluções
Para Ildo Sauer, a base para o imaginário de necessidade de privatização da Petrobras tem origem nesses fatores.
O cenário midiático e policial da corrupção, amplificado pela Lava Jato, somado aos erros de gestão, criaram, ao lado de outros acontecimentos, o terreno fértil para o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. Com Michel Temer na Presidência (2016-2018), então, retomou-se o processo de privatização e financeirização da estatal, que havia iniciado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), com a gestão de Pedro Parente, em 2017, e intensificado com Roberto Castello Branco, presidente da estatal cuja remoção do cargo foi anunciada em 19 de fevereiro pelo presidente Jair Bolsonaro.
Em nota publicada no dia do anúncio da destituição de Castello Branco, o presidente do Clube de Engenharia, Pedro Celestino Pereira, lembrou que “a gestão [de Aldemir Bendine, que substitui Graça Foster, ainda em 2015] comprou a ideia do endividamento excessivo comparado ao das petroleiras multinacionais e colocou em prática plano de desinvestimentos da empresa, destinado a retirar dela o protagonismo que tivera desde a sua criação, abrindo caminho para a captura do petróleo do pré-sal pelas multinacionais do setor”.
Logo depois, em 2017, a gestão de Pedro Parente introduziu a política de Preços Paritários de Importação (PPI), e a estatal abriu mão de controlar diretamente o preço, para determiná-lo de acordo com o preço do mercado internacional. Nas palavras de Lima, especialista em petróleo, “essa interferência que o Pedro Parente defende não atende ao interesse público. O que adianta ter concorrência em torno de um PPI? Isso só prejudica o povo brasileiro. Esse tipo de competição é estúpida. É uma competição com importadores, que para competir vão querer um preço alto”.
Castello Branco e política de preços
Após o anúncio da demissão de Castello Branco por Bolsonaro, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) destacou que a PPI é “uma política que reajusta gasolina, óleo diesel e gás de cozinha com base no preço internacional do petróleo e na cotação do dólar – mesmo quando esses combustíveis são produzidos no país, com óleo brasileiro. Resultado: combustíveis caros, fretes e alimentos em alta, inflação subindo”. Somente este ano, a gasolina sofre quatro reajustes, e o diesel, três,
Na mesma linha, a Associação de Engenheiros da Petrobras (AEPET) também destacou, em nota, como a gestão de Castello Branco foi marcada pela PPI. A Associação chamou a atenção para a redução dos investimentos e a privatização acelerada, “com a consequente desintegração vertical e nacional da Petrobras, a fim de maximizar pagamentos de dividendos no curto prazo e pavimentar o caminho para a realização de seu declarado sonho de privatizar a Petrobras que é a maior companhia brasileira”.
“O foco é o acionista”
Segundo Paulo César Ribeiro Lima, esse processo de privatização e financeirização da Petrobras fez com que houvesse uma “distorção enorme com relação à ação da Petrobras. (…) A Petrobras não tem como atender a dois senhores: atende ao povo brasileiro ou ao mercado e ao acionista. Mas o foco é o acionista privado, que tem 60% do capital”.
Na década de 1980, quando o especialista trabalhou na Petrobras, a missão da estatal era abastecer o mercado nacional com os menores preços possíveis, seguindo os passos pelos quais a companhia foi criada, ainda em 1953, com Getúlio Vargas na Presidência (1930-1945 e 1951-1954), com o objetivo de ser uma ferramenta para o desenvolvimento nacional. Quando a Petrobras, no entanto, perdeu o monopólio sobre partes da operação do petróleo no país na década de 1990 e entrou para o mercado de ações, “a coisa realmente se complicou”, aponta Lima
Somente no primeiro ano do governo Bolsonaro, até novembro de 2019, foram vendidos R$ 70,9 bilhões em ativos da Petrobras. O caso mais recente foi a da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, vendida pela metade do preço. A avaliação do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) apontava para um valor entre US$ 3 bilhões e US$ 4 bilhões, e o grupo Mubadala Capital, dos Emirados Árabes, acabou adquirindo-a por US$ 1,65 bilhão.
Em agosto de 2020, o governo federal vendeu a integralidade do que restava de sua participação de 37,5% no capital social da Petrobras Distribuidora S.A. (BR Distribuidora).
Na esteira da privatização, entre 2020 e 2021, estão mais sete refinarias: Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no Paraná; Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), no Rio Grande do Sul; Refinaria Isaac Sabbá (Reman), no Amazonas; Refinaria Lubrificantes e Derivados do Nordeste (Lubnor), no Ceará; Unidade de Industrialização do Xisto (SIX), no Paraná; Refinaria Abreu e Lima (RNEST), em Pernambuco; e Refinaria Gabriel Passos (Regap), em Minas Gerais.
Bolsonaro “comunista”
A intervenção do presidente Jair Bolsonaro na diretoria da Petrobras, com o anúncio da demissão de Roberto Castello Branco, que deve ficar na presidência da estatal até março, e a indicação do general Joaquim Silva e Luna para o cargo, levou Marcelo Mesquita, um dos conselheiros da estatal, a afirmar que o capitão reformado flerta com o comunismo. “É o primeiro flerte dele para mostrar que ele é comunista”, disse.
O conselheiro, no entanto, parece refletir o pensamento dos financistas. Logo após o apontamento do novo nome para a direção da empresa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) anunciou que estuda abrir um processo contra o governo para avaliar se a interferência fere as regras do mercado. Na mesma linha, o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, publicou no Twitter: “Boa tarde, Venezuela”.
Durante coletiva de imprensa no sábado (20), Silva e Luna afirmou que a gestão deve ser direcionada por três aspectos: “a valorização do petróleo e do dólar, o interesse do investidor, que está de olho no preço das ações, e também o interesse do país e do brasileiro que precisa se locomover e abastecer seu veículo”.
O general nada falou sobre a missão que constituiu a Petrobras, e que no seu nascimento esteve ligada a um projeto de desenvolvimento nacional.
“No governo Vargas havia um forte movimento de que era necessário criar bases novas para organizar a produção, a modernização e a urbanização brasileira. Para que o país não fosse a expressão, apenas, de uma oligarquia agrária. Aliás, para onde, lamentavelmente, parece que o governo atual está nos levando”, afirma Ildo Sauer.
Fonte: Brasil de Fato, por Caroline Oliveira