Por Almunita dos Santos Ferreira Pereira*
As chagas do racismo que persiste na sociedade brasileira são amparadas por uma herança do passado colonial, que por vezes permeia as relações e a convivência social. Pesquisas têm demonstrado que o fator raça-cor ainda é um filtro social determinante para o acesso aos direitos sociais como educação, bem-estar, saúde, segurança e a inserção do mercado de trabalho. A inclusão e exclusão são resultados de uma cultura hegemônica.
Ser vítima da violência do racismo provoca adoecimento, dor e sentimentos de tristeza, deixando marcas inimagináveis. Dessa maneira se configura em uma realidade brutal. Segundo o antropólogo Gilberto Velho, a violência é muito mais agravante quando dá origem ao desrespeito, à negação do outro, à violação dos direitos humanos, e nesse sentido nem sempre a violência acontece como um ato ou como uma relação identificável; muitas vezes, ela é naturalizada.
Em seu livro Memórias da Plantação (Ed. Cabogó, 2019), Grada Kilomba examina a atemporalidade do racismo cotidiano, descrevendo o racismo não apenas como a reencenação de um passado colonial, mas também como uma realidade traumática, que tem sido negligenciada.
A pessoa que sofre o racismo, que é subjugada pela intolerância e diferença existente no outro, por razão da sua cor de pele ou etnia, sendo vista como ser inferior, vivencia a tentativa de sua desumanização, da destruição e da desconstrução do seu corpo e da sua identidade.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas (Ed. Fator, 1983), Frantz Fanon salienta que diante da sua experiência como um homem negro foi odiado, desprezado, detestado, não pela vizinha do outro lado da rua, ou pelo primo por parte de mãe, mas por uma raça inteira.
Ao longo dos tempos, o racismo se transformou, deixando de lado o viés declarado e adotando uma postura de caráter velado, camuflado pela ideia de democracia racial.
Bandeira de insensibilidade
Nesta direção, Carlos Moore, em Racismo e sociedade – novas bases epistemológicas para entender o racismo (Maza Edições, 2007) tece o seguinte comentário:“O racismo retira a sensibilidade dos seres humanos para perceber os sentimentos alheios, conduzindo-os inevitavelmente à sua trivialização e banalização. Essa bandeira de insensibilidade, incompreensão e rejeição ontológicas do outro encontrou na América Latina a sua mais elaborada formulação no mito-ideologia da ‘democracia racial’.
A chaga do racismo na sociedade contemporânea se alastra, tornando-se uma prática recorrente como uma ferida aberta e ainda sem remédio que sobrevive arraigada no consciente/inconsciente coletivo.
No entanto, falar sobre o racismo ainda é como revelar segredos ou disseminar algo proibido que deva ser mantido sob sigilo e negada sua existência. Assim o racismo permanece se estabelecendo e se estruturando de maneira efetiva.
Nesta senda, Teresinha Bernardo e Regimeire Oliveira Maciel ponderam, no artigo Racismo e Educação: um conflito constante, publicado na Contemporânea, revista de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), que o produto do racismo é apresentado como evidente por si mesmo e fragmenta a identidade negra, impossibilitando que o grupo atue coletivamente. Os problemas enfrentados pela população negra deixam de ser coletivos e tornam-se individuais.
Violência invisível
No Brasil, a naturalização do preconceito e da discriminação racial contribui muitas vezes para a invisibilidade da violência exercida sobre a população negra. Isso acontece em decorrência do mito da democracia racial em certos aspectos funcionar como véu sobre a questão racial. Dessa forma auxilia o mascaramento da realidade, como mostra a pesquisadora Ângela Maria dos Santos no trabalho Vozes e silêncio no cotidiano escolar: análise das relações raciais entre alunos negros e não negros em duas escolas públicas no município de Cáceres (MT), realizado em 2005 na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Diante do mito da democracia racial brasileira há a dificuldade do reconhecimento da discriminação e, por consequência, a identificação dos negros a ser incluída em políticas de combate ao racismo e assim a desigualdade social, decorrente da discriminação racial, que perpassa os diversos setores da sociedade.
Neste sentido Michel Wieviorka em O racismo, Uma introdução (Perspectiva, 2007) tece o seguinte comentário: “O racismo consiste em caracterizar um conjunto humano pelos atributos naturais, eles próprios associados às características intelectuais e morais que valem para cada indivíduo dependente deste conjunto e, a partir disso, pôr eventualmente em execução práticas de inferiorização e de exclusão”.
Temos um longo caminho pela frente, diante dos enfrentamentos de um imaginário naturalizado e radicado de forma intensa na sociedade brasileira e na sua subjetividade, que se coaduna com as amarras que o colonialismo nos deixou.
Por isso, é necessário e imprescindível que existam ações educativas e políticas públicas que favoreçam e promovam o reconhecimento das diferenças e o respeito entre as pessoas, para que assim intervenham na disseminação e propagação ante a chaga do racismo. O racismo pertence ao presente, e não apenas ao passado da humanidade.
Fonte: Rede Brasil Atual; *Almunita dos Santos Ferreira Pereira é mestre em Psicologia da Educação e Doutoranda em Ciências Sociais, membro do Observatório do Racismo na PUC-SP.