Dezenas de mortes, escolas fechadas, comércio interrompido, comunidades inteiras paradas. O cenário descreve a chacina da Vila Cruzeiro, na Penha, na última terça-feira (24), mas também pode ser usado para falar sobre o caso no Jacarezinho, em maio de 2021, ou outros diversos episódios na cidade do Rio de Janeiro e em municípios vizinhos. Em comum, também, o fato de que a chamada "guerra às drogas" segue sem o resultado a que se propõe, conter a criminalidade.
Para a cientista política e antropóloga da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz, que é especialista em segurança pública, "os verdadeiros donos do crime estão hoje dando gargalhada, batendo palma e comemorando a matança por aí".
Muniz, que dá aulas em cursos para policiais em Brasil e em outros países, afirma que as pessoas mortas em operações como a da Vila Cruzeiro e do Jacarezinho são consideradas "descartáveis" pela estrutura do crime. Por isso, essas chacinas, apesar das perdas e do grande apelo midiático, têm efeito nulo na contenção da criminalidade.
"Pro traficante, pro miliciano, pro chefe do crime, as pessoas que estão na linha de frente são descartáveis, são uberizadas, são operários que ganham mal. E eles não podem recuar. Se recuam, levam tiro de quem tá atrás. Eles estão ali pra servirem de bucha de canhão, são mais preciosos para as polícias e a Justiça do que pra própria economia do crime, que substitui essa peça com muita facilidade. É um pessoal que ganha R$ 500, R$ 1.000. Um bando de precarizados ganhando mal e sendo obrigados a correr pra frente, não podem voltar", aponta.
Outra especialista, a antropóloga Carolina Christoph Grillo, professora da UFF e coordenadora de pesquisas do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da universidade (Geni), concorda. Ela aponta que as operações que culminam em chacinas são ineficazes e ineficientes, já que supostamente são ações para bater de frente com facções de alcance nacional, porém, acontecem em territórios reduzidos. Grillo destaca: as próprias polícias sabem sobre o carater "substituível" das pessoas que são vítimas dessas operações.
"As pessoas assassinadas, mesmo as que de fato possuíam participação no tráfico, são substituíveis. A própria polícia sabe muito bem disso. Eles próprios têm a expressão que usam, 'enxugar gelo'. Isso custa muito caro para quem vive nessas regiões, tem paredes atravessadas por tiros de fuzil, crianças frequentemente assassinadas durante as operações. E é ineficiente. A prova é que as mesmas fações que estão sendo combatidas há mais de três décadas dessa maneira continuam lá", pondera.
Jacqueline Muniz, que há mais de trinta anos pesquisa a área da segurança pública e participou da criação e implementação de programas na área, afirma que as polícias, no Brasil, têm um "cheque em branco". Para ela, as diferentes forças de segurança têm atuações que muitas vezes se cruzam, e não há limites claros para a atuação de cada uma delas.
"Ou vai todo mundo para uma ocorrência ou não vai ninguém. Quando você não tem definição de competências partilhadas, exclusivas e redundantes, não tem como definir missão, não tem como definir padrão tático de atuação, validar logística ou armamento e muito menos os procedimentos. Vira uma 'bateção de cabeça'", aponta.
A pesquisadora alerta: essas operações policiais, caras e ineficientes, causam mais dano do que apenas mortes e traumas nas comunidades diretamente afetadas. Geram também escassez de policiamento em outros pontos das cidades, ao mesmo tempo em que não ajudam a resolver os problemas efetivos dos locais onde ocorrem.
"É mentira dizer que operação policial produz controle sobre território e população. Não produz. Produz efeito pontual, no tempo e no espaço, e não é capaz de se sustentar para além do imediato. Então para que que servem essas operações quando são mal feitas, mal planejadas, todo mundo no calor do acontecimento querendo brincar de super herói, exibindo musculosidades por aí? Para produzir a polícia do espetáculo, a polícia de ostentação", pontua.
Efeito eleitoral
Após a chacina da última terça na Vila Cruzeiro, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e o presidente, Jair Bolsonaro, ambos do PL, se manifestaram em apoio à atuação das polícias. A operação foi feita em conjunto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, pela Polícia Federal e pela Polícia Rodoviária Federal.
Mesmo com mais de 25 mortes, Castro garantiu que a operação seguiu os protocolos estabelecidos pela Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que questiona a atuação das polícias no Rio e a letalidade de ações policiais no estado.
O governador alegou que policiais foram atacados por bandidos fortemente armados, e o "violento confronto culminou na morte dos criminosos". Ele disse ainda que a morte de uma moradora da região está sendo investigada.
"Quem aponta uma arma contra a polícia está apontando uma arma contra toda sociedade. Isso jamais vamos tolerar. Eu luto por um Rio de paz. Toda morte é lamentável, mas todos sabemos que nossas responsabilidades impõem que estejamos preparados para o confronto", afirmou, no Twitter.
Na mesma rede social, Bolsonaro foi mais enfático: chamou os policiais participantes da chacina de "guerreiros" que "neutralizaram pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa".
Destacou, ainda, a apreensão de "grande quantidade de drogas", além de 13 fuzis, quatro pistolas e 12 granadas, e, em um último tuíte em uma sequência de mensagens, lamentou a morte da "vítima inocente", além de criticar a "inversão de valores de parte da mídia, que isenta o bandido de qualquer responsabilidade".
Carolina Grillo destaca que não é possível afirmar que operações como essa tenham motivação eleitoral. Porém, destaca que a chacina está sendo utilizada publicamente como peça de campanha.
"Sabe-se, por experiência das últimas eleições, que esse discurso encontra forte apelo junto a uma população que vive com medo da violência. Os discursos de ódio e as soluções fáceis pra problemas complexos, a ideia de que a violência de estado é capaz de ser eficiente no combate à violência, isso encontra bastante receptividade na opinião pública, que se sente mais segura quando lê notícias de que supostos criminosos teriam sido assassinados", destaca.
"A gente que realiza pesquisa com base em dados, evidências, o que observa é que as operações policiais, muito pelo contrário, não contribuem pra redução de ocorrência de crimes", complementa.
Fonte: Brasil de Fato (RJ), por Felipe Mendes