Para a professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ Ivana Bentes, a extrema-direita se apropriou do sentido transgressor e revolucionário das lutas anticoloniais e anticapitalistas para propor sua própria “revolução” necropolítica. Expressão desse fenômeno no Brasil, o bolsonarismo exacerba e alimenta esses valores, com memes, imagens, declarações que falam cotidianamente de “eliminar, matar, derrotar”. Pior, são estimulados pelo seu líder, Jair Bolsonaro, a passarem do discurso à prática.
Nesse sentido, não se trata mais de figuras de linguagem ou “linguagem figurada”, mas de “atos de fala” que incentivam a concretização da violência. Foi isso que ocorreu, segundo ela, no “crime de ódio político” praticado por um bolsonarista contra Marcelo Arruda. O dirigente petista foi assassinado no dia do seu aniversário, em Foz do Iguaçu, na semana passada.
“O que Bolsonaro oferece é a partilha da violência, o exercício da violência de todos contra todos, o exercício da violência salvaguardado pelo Estado brasileiro. É algo inimaginável, mesmo na ditadura militar, que buscava ocultar crimes de tortura, perseguições etc. Bolsonaro legitima essas práticas em praça pública”, afirmou a especialista à João Vitor Santos, em entrevista especial para o Instituto Humana Unisinos (IHU).
“O que Bolsonaro prometeu aos seus eleitores foi isso: a desrepressão brutal do ódio e a partilha da violência contra os ‘inimigos’. Armar o cidadão e dar um salve para que ‘faça o que tem que ser feito’, como diz em uma das suas lives no Facebook para seus seguidores.
Guerra santa cultural
Desse modo, os conservadores e a extrema-direita incitam a uma “guerra santa” em nome de valores e crenças que ferem de morte a democracia, que abalam a coesão social, que produzem uma cisão irremediável entre “nós” e “eles”. Assim, Ivana afirma que esses grupos hackearam as linguagens e procedimentos dos movimentos sociais, da cultura e da contracultura. E transformaram “o intolerável, o impensável” num horizonte político “transgressivo e desejável”.
No Brasil, essas inovações discursivas ainda se combinam com o passado escravocrata e patriarcal. Dessa forma, fragmentos do discursivo tradicionalista, segundo ela, servem como uma das “colas” para a “colcha de retalhos ideológica” que é o bolsonarismo.
“Os atos de fala descem da linguagem figurada e se tornam literais, vendidos como a expressão de uma guerra maior: contra o comunismo, o socialismo, o globalismo, o esquerdismo, tudo isso apresentado como signos de um estado global de corrupção e degradação moral com tons apocalípticos. Ou seja, os embates políticos locais e específicos do Brasil se associam e podem ser melhor entendidos a partir de outros ecossistemas: da extrema-direita global, do populismo digital e de movimentos como o tradicionalismo”.
Ela coloca nesse mesmo pacote a perseguição à menina de 12 anos que foi estuprada e teve o direito ao aborto cerceado. O mesmo tipo de violência também se manifesta no caso do anestesista que estuprou uma mulher durante o parto. Ou ainda, as denúncias de assédio sexual envolvendo o ex-presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães. E também aos ataques à Amazônia e as populações indígenas que ali vivem.
Estética da violência e empoderamento
Em sua pesquisa, Ivana estuda a emergência da dimensão da violência como linguagem estética, em especial a partir da obra do cineasta Glauber Rocha, um dos expoentes do Cinema Novo. Nesse momento, segundo ela, não se tratava de apologia da violência ou justificativa da violência como “fenômeno” e “instrumento de assujeitamento e poder”. Era uma espécie de “liberação da violência” que expressava os sentimentos das vítimas da fome e da seca, por exemplo.
Mais recentemente, diante do avanço das fantasias de poder ultraconservadoras, “diante de figuras ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros”, ela vê emergir novamente, no cinema e no imaginário coletivo, propostas que se apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de resistência. Obras recentes como Bacuraue Marighella expressam esses sentimentos.
“A cidadezinha de Bacurau é uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max sertaneja, pronta para explodir”, destaca Ivana Bentes. Para ela, a película de Kleber Mendonça Filho, “traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos de 1970”, sem fazer qualquer menção a elas, no entanto. E também sem qualquer discurso político ou panfletário. “Simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas”.
Fonte: Rede Brasil Atual, por Marcos Corrêa