Pandemia e tecnologia agravam precarização do trabalho das mulheres



Pandemia e tecnologia agravam precarização do trabalho das mulheres

 

Em nota técnica na 21ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), refletimos sobre alguns dos desafios enfrentados pelas mulheres, em seu cotidiano de trabalho, tendo como base a atual configuração do ambiente profissional em que, devido aos avanços tecnológicos, estão presentes, com formas cada vez mais sofisticadas, mecanismos de controle, ou autocontrole, que visam a garantir o desempenho individual, o que contribuiu para o aumento dos problemas de saúde, sobretudo do ponto de vista psicológico. Neste artigo, apresentamos uma síntese da nota, cuja íntegra pode ser acessada em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs.

Disciplina e controle do trabalho na Era Industrial

Os estudiosos do trabalho, na “Era Industrial”, identificaram (e estudaram) o anseio, por parte dos donos dos meios de produção, para aprimorar os aspectos “disciplinadores” que garantissem a eficiência na produção e o aumento dos lucros. Na medida em que o processo produtivo se alterava, possibilitando maior produção em menor tempo, seria necessário apurar o processo de controle. A figura do “chefe”, elemento simbólico do processo de gestão, responsável por assegurar que todos estivessem cumprindo a bom termo, suas tarefas, foram objeto permanente de observação e aperfeiçoamento.

Esse aspecto da “disciplina” pode ser associado a um processo de vigilância. Vigiar, função atribuída a um elemento externo ao trabalhador, em geral o chefe, tornou-se fundamental para conformar o trabalho ao interesse produtivo. Um exemplo disso é o acesso ao banheiro, que nem sempre é permitido livremente, pois afastar-se do posto de trabalho pode prejudicar a obtenção do lucro. Há relatos de mecanismos utilizados para dificultar as idas ao banheiro, como por exemplo: pedir a chave para o chefe, e talvez explicar qual a necessidade fisiológica; banheiros distantes do local de produção o que dificulta percorrer a distância até o sanitário e garantir o tempo para voltar. Isso afeta principalmente mulheres grávidas ou que estejam em período menstrual.

O século 20 se caracteriza, nesse sentido, pelo desafio de organizar, de forma racional-científica, as formas de produção e de gestão. Nas primeiras décadas, os modelos Taylorista e Fordista, e, posteriormente, na década de 1970, o Toyotismo, são exemplos das formas de organização que revolucionariam o trabalho fabril. A “administração do tempo” e a maximização da produção e do lucro eram os principais objetivos. Esses modelos, cada um ao seu modo, estruturaram mecanismos de controle e vigilância.

O taylorismo-fordismo, modelo baseado na produção em diferentes etapas, organizado em “linha de montagem”, tem como paradigma a figura do chefe controlando a produção. O Toyotismo, por sua vez, modifica esse modelo e introduz, através de trabalhos em “células”, um controle realizado pelo próprio grupo, que, de alguma forma, controla a produção.

É preciso considerar, com relação ao trabalho na modernidade, que além dos elementos econômicos envolvidos (produção, lucro, mais-valia), também existem os elementos “simbólicos”. Se em Marx o trabalho pode ser compreendido como uma forma de realização social, em Weber temos, a partir de sua análise da ideia protestante do trabalho como “vocação” – uma forma de agradar a Deus –, um significado “ético/moral”, ou mesmo de distinção. Isso torna complexa toda essa discussão, inclusive a ideia da possibilidade de mais “tempo livre”, que abordaremos a seguir.

O controle no trabalho na Era Digital

O sociólogo Domenico De Masi analisa o trabalho, na Era Industrial, como um trabalho rotineiro e com pouco espaço para o ócio e a criatividade. Para o autor, o avanço tecnológico e a consequente diminuição de determinadas etapas no processo produtivo trariam, na Era Digital, maior tempo livre no trabalho, permitindo espaço para a criatividade, o que De Masi chamou de “ócio criativo”. Em que medida essa ideia se concretizou?

Embora a “promessa” por mais tempo disponível, decorrente dos avanços tecnológicos, e por conseguinte diminuição no tempo gasto em cada tarefa, isso não tem acontecido na prática. Na Modernidade, o tempo passou a ser dinheiro, e o tempo de trabalho significa maior ou menor lucro. Dessa forma, o que temos vivenciado, em grande parte das atividades laborais, é a utilização da tecnologia para aperfeiçoar os mecanismos de controle do tempo de trabalho.

Como o tema, aqui, são os mecanismos de controle e vigilância, aperfeiçoados a partir da tecnologia, digamos que no atual estágio alcançamos o que o filósofo coreano Byung Chul Han chama de “sociedade do desempenho”. Com a possibilidade de gestores e dos trabalhadores(as), de forma cada vez mais imediata, avaliarem o resultado da produção, mercadorias ou serviços, o que acontece é que o trabalhador(a) é “empurrado” (pelo paradigma do desempenho) a exercer uma implacável cobrança (ou autocobrança) sobre suas próprias metas.

As trabalhadoras na sociedade ‘uberizada‘

As premissas essenciais dos modos de produção capitalista – alienação e exploração – podem se acentuar ainda mais pelas plataformas digitais. A uberização da economia, por meio de formatos muitas vezes imperceptíveis, pode conseguir o controle do tempo do trabalhador(a) em proporções ainda maiores. Às mulheres, é alardeado que a flexibilização do trabalho (jornada com tempo parcial, banco de horas, turnos de revezamento) é uma “oportunidade” de conciliar a jornada de trabalho e os afazeres domésticos. Esse argumento ganhou reforço nesse tempo de pandemia, da covid-19, em que os sistemas teletrabalho e home office foram amplamente utilizados.

A pandemia trouxe ainda mais precarização para o universo feminino, sobretudo para as trabalhadoras negras. Muitas perderam seus empregos formais (protegidos) e passaram a fazer “bicos” ou a trabalhar em sistemas “uberizados”. Enquanto buscam cumprir as metas, impostas por sistemas que avaliam de forma imediata a quantidade e a qualidade da produção, as mulheres passam a acumular ainda mais tarefas – trabalho doméstico, reprodutivo, economia do cuidado. Dessa forma, encolhe a perspectiva de tempo livre e de uma vida com qualidade.

Considerações finais

Estudos sobre gênero e plataformas digitais têm se ampliado. O alto nível de desemprego no país – 13,5 milhões de desempregados em novembro de 2021 (IBGE) – associado à ascensão das plataformas digitais como alternativa imediata de renda e o crescimento da uberização representa, como comenta Ludmila Costhek Abílio, ao mesmo tempo, uma opção e um risco para as mulheres. Isso ocorre por esse tipo de trabalho estar frequentemente ligado a jornadas diárias exaustivas, ao controle exacerbado por parte das empresas e à ausência de qualquer tipo de garantia ou direito trabalhistas, situações inerentes à sociedade do desempenho e que a levam à sociedade do cansaço.

Neste contexto, experiências de produção “não capitalistas” acontecendo a partir da economia feminista, precisam ser melhor analisadas. Um exemplo é o MatchImpulsa,[1] um centro transversalmente feminista de programas para a plataforma digital da Economia Social e Solidária (ESS) e Economia Colaborativa. Outro projeto relevante é o DisCOs, que propaga os princípios do cooperativismo na economia feminista para Organizações Autônomas Descentralizadas (ou DAOs).

Claudio Pereira Noronha. Graduação em Administração de Empresas (Centro Universitário Fundação Santo André); Pós-graduação (Lato sensu) em Globalização e Cultura (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo); mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de SP; assessor do Sindicato dos Bancários do ABC.

Fonte: Rede Brasil Atual, por Claudio Pereira Noronha e Inez GalardinovicInez. 

Claudio Pereira Noronha. Graduação em Administração de Empresas (Centro Universitário Fundação Santo André); Pós-graduação (Lato sensu) em Globalização e Cultura (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo); mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de SP; assessor do Sindicato dos Bancários do ABC.

Inez Galardinovic. Graduação em Ciências Sociais e Música. É bancária, diretora do Sindicato dos Bancários do ABC (Secretaria de Formação) e da Associação dos Empregados da Caixa Econômica (Apcef), como Secretária da Mulher. Coordena o coletivo de mulheres da CUT/ABC.

 

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