Os vários motivos para a Cemig não ser privatizada



Os vários motivos para a Cemig não ser privatizada

A intenção do governador Romeu Zema (Novo) de privatizar a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), manifestada diversas vezes desde o início do mandato, está longe de ser concretizada. Pesam contra a proposta as restrições impostas pela Constituição Estadual e a oposição de parlamentares e trabalhadores, que criticam a possível transferência da maior estatal do estado para a iniciativa privada e acusam o governo de promover o sucateamento da concessionária mineira de energia para justificar a desestatização.

O modelo sugerido também é visto com críticas pelo mercado financeiro, que prevê conflitos no processo de venda. Responsável pelo fornecimento de energia para 8,7 milhões de consumidores em 774 municípios mineiros, a Cemig fechou os nove primeiros meses do ano passado com receitas de vendas de R$ 23,99 bilhões.

No caminho da privatização, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) investiga irregularidades em contratos da Cemig. “Na minha visão, a CPI travou qualquer discussão em relação a isso (privatização). Ela revelou que estava tendo um plano arquitetado, muito bem articulado, para sucatear a empresa com uma prestação de serviço ruim”, afirma o presidente da CPI, deputado Professor Cleiton (PSB).

“Se quiser falar da privatização da Cemig, vai ter que seguir todo o rito estabelecido pela Constituição, que é o referendo popular, depois tem a aprovação por parte dos deputados. Então acho que se o governo pensa em privatizar a Cemig, não vai conseguir nessa legislatura”, acrescenta o deputado. A investigação foi prorrogada até fevereiro de 2022.

“A energia é mais cara em Minas e ainda não tem um serviço de tanta qualidade assim entregue. E isso, o governador Zema vê que é meio culpa do governo e que o governo não consegue gerir de uma forma eficiente. Então, ele quer tirar um pouco desse poder para que novos investidores, novos acionistas possam vir para controlar a Cemig, para que ela entregue um serviço de mais qualidade”, avalia Daniel Rocha, analista da Valor Investimentos.

O deputado Professor Cleiton observa que a deficiência é maior no interior, onde há informações de que em “alguns lugares nem tem energia, e alguns serviços precisam ser feitos com geradores”.

Para os trabalhadores, a privatização da Cemig vai trazer prejuízos para os consumidores e os funcionários da estatal.

“O consumidor reclama: ‘A Cemig demora seis meses para fazer uma ligação nova’. Isso é porque está faltando investimento, porque os recursos estão sendo direcionados para contemplar acionistas nesse movimento de antecipação da privatização”, aponta Emerson Andrada Leite, coordenador-geral do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro-MG).

“A empresa privada tende a intensificar a atuação nesse modelo e os consumidores vão ser duplamente prejudicados: a queda na qualidade de energia e também com o aumento no custo (da conta de luz)”, afirma o coordenador do Sindieletro-MG.

“Essa questão dos lucros da companhia, da presença de servidores que são reconhecidos no Brasil inteiro como servidores de destaque no setor energético, só reforça nossa ideia de que a Cemig é um patrimônio do povo mineiro e é um patrimônio que tem que ser preservado”, reforça Professor Cleiton.

Manobra para sucatear a empresa

A demora no atendimento está supostamente associada à redução da estrutura da empresa, que viria ocorrendo desde o primeiro ano do mandato de Romeu Zema. Segundo afirmaram parlamentares mineiros e goianos em audiência pública na Comissão de Minas e Energia da ALMG, em outubro de 2019, existe um processo de “sucateamento planejado” para gerar insatisfação entre os consumidores e proporcionar um ambiente favorável à privatização da Cemig.

No encontro, deputados goianos disseram que o mesmo processo foi adotado na privatização da Companhia Energética de Goiás (Celg). Segundo informaram, os serviços pioraram e as tarifas aumentaram após a venda da Celg para a Enel, em fevereiro de 2017, o que levou a uma CPI da Aneel da Assembleia de Goiás.

Segundo informações divulgadas na audiência, apenas em 2019 o governo de Minas teria fechado 50 bases operacionais da Cemig, o que amplia o tempo para restabelecimento de energia, com algumas equipes tendo que de deslocar até 300 quilômetros para atender chamados dos consumidores.

“A gente se preocupa com a companhia, mas não é só o lucro, é também como trata os servidores, como trata o consumidor final. A CPI é reveladora nesse sentido”, diz Professor Cleiton.

Também na Comissão de Minas e Energia, em outubro de 2019, o diretor da Associação dos Beneficiários da Cemig Saúde e da Forluz, Ney Alencar, lembrou do processo de privatização da Light, distribuidora de energia no Rio de Janeiro.

“A Light foi comprada pela estatal francesa EDF que rapinou durante vários anos, não investiu, demitiu, terceirizou tudo e deixou de investir em manutenção”, disse Ney Alencar.

“Depois que os franceses rapinaram à vontade, disseram: ‘Não queremos mais’. Foram embora e deixaram o abacaxi”, completou. A Cemig, então, comprou a Light e teve que investir em manutenção para consertar “tudo o que os franceses deixaram de ruim”, disse Ney na audiência.

“Hoje vocês não ouvem mais falar em acidentes na rede subterrânea do Rio”, acrescentou. Em março de 2006, a Cemig liderou o consórcio com a Andrade Gutierrez e a Pactual Energia na compra de 79,57% do capital da Light, por US$ 319,82 milhões.

Investimentos em outros estados

A compra da Light foi desfeita em janeiro deste ano, com a venda da participação de 22,58% que a Cemig tinha no capital total da distribuidora de energia do Rio de Janeiro, por mais de R$ 1,3 bilhão.

A Light foi uma das investidas da Cemig fora do estado que envolveram também a compra da Renova, empresa de geração de energia de fontes renováveis, de participação na Taesa, com linhas de transmissão espalhadas pelo país, e de participações em usinas hidrelétricas no Norte do país. Essas operaçoes hoje são criticadas até mesmo pelo governador Romeu Zema.

“A empresa, nos últimos anos, foi utilizada de forma política, e não aplicou recursos em Minas Gerais. Foi investir no Rio de Janeiro, Light, Renova, na Bahia, e Belo Monte e Santo Antônio, em Pará e Roraima. E, os mineiros, zero. Hoje, a Cemig tem boa parte de suas linhas de transmissão e distribuição sucateadas. Estamos correndo atrás”, afirmou Zema em entrevista exclusiva ao Estado de Minas publicada em 27 de dezembro.

“Concordo com o governador que foi um erro investir em outros estados, mas, ao mesmo tempo, a gente enxerga a possibilidade de tornar a Cemig grande novamente, oferecendo o que ela sempre ofereceu para o estado: energia de qualidade, tabela social, preocupação com questões do estado em projetos sociais e culturais”, disse Professor Cleiton. Para ele, essa retomada pode ser feita sem que para isso a Cemig precise ser privatizada.

“Outra questão importante. Onde a energia no mundo é privatizada? Estamos falando de um setor estratégico. Nos Estados Unidos, por exemplo, 90% da energia é controlada pelo Exército americano. Então, não é questão de ser contra a privatização em todos os setores, mas existem alguns que são estratégicos na questão da soberania, na autogestão”, afirmou o presidente da CPI que investiga a empresa.

Analista da Valor Investimentos, Daniel Rocha também reconhece que os investimentos feitos fora do estado geraram um problema. “A Cemig é de Minas Gerais, só que está saindo muito para fora e esquecendo um pouco de Minas, e essa é uma grande queixa que existe”, disse ele. “A ideia é que volte a focar em Minas, volte a ser novamente a Cemig que é de Minas e que consiga entregar mais eficiência para Minas”, acrescenta o analista, que acredita que essa nova fase possa ser feita com a participação de novos sócios na estatal.

O que diz a Lei

Constituição Mineira

Artigo 14

§ 15 – Será de três quintos dos membros da Assembleia Legislativa

o quórum para aprovação de lei que autorizar a alteração da estrutura societária ou a cisão de sociedade de economia mista e de empresa pública ou a alienação das ações que garantem o controle direto ou indireto dessas entidades pelo Estado, ressalvada a alienação de ações para entidade sob controle acionário do poder público federal, estadual ou municipal.

(Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Emenda à Constituição nº 50, de 29/10/2001)

(Parágrafo com redação dada pelo art. 2º da Emenda à Constituição nº 66, de 25/11/2004)

§ 16 – A lei que autorizar a alienação de ações de empresa concessionária ou permissionária de serviço público estabelecerá a exigência de cumprimento, pelo adquirente, de metas de qualidade de serviço e de atendimento aos objetivos sociais inspiradores da constituição da entidade.


(Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Emenda à Constituição nº 50, de 29/10/2001)

§ 17 – A desestatização de empresa de propriedade do Estado prestadora de serviço público de distribuição de gás canalizado, de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica ou de saneamento básico, autorizada nos termos deste artigo, será submetida a referendo popular.

(Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Emenda à Constituição nº 50, de 29/10/2001.)

(Parágrafo com redação dada pelo art. 2º da Emenda à Constituição nº 66, de 25/11/2004.)

Trabalhadores temem perdas

O principal temor dos trabalhadores da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) é que a com a transferência do controle acionário da empresa para a iniciativa privada, os operários percam a estabilidade, possam ser demitidos e ainda fiquem sem garantias asseguradas em acordos com a estatal.

Segundo o coordenador-geral do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro-MG), Emerson Andrada Leite, a Cemig tem hoje cerca 5 mil empregados na ativa e mais de 20 mil terceirizados.

“Um dos graves riscos desse processo de precarização da empresa está justamente nas demissões. Uma das metodologias é demitir um funcionário mais antigo, mais experiente, consequentemente bons e com salários maiores, para colocar um outro trabalhador inexperiente, iniciante na carreira, mas mais barato para a empresa. Na prática, a Cemig hoje precisa muito mais do que de 5 mil funcionários para funcionar”, afirmou Emerson Leite.

Na divulgação dos resultados do terceiro trimestre, a Cemig informou uma redução no número de empregados de 4,1%. A gente defende a manutenção da Cemig como empresa pública com três vieses. O primeiro é a defesa como serviço público. A segunda questão diz respeito ao custo da energia. Em terceiro lugar a gente faz uma defesa também dos trabalhadores”, pontuou o coordenador do Sindieletro-MG.

Ainda de acordo com Emerson Leite, os trabalhadores estão excluídos das discussões sobre a proposta de privatização da Cemig.

“Em relação ao processo de privatização, não estamos sendo chamados para nenhuma conversa. A empresa não conversa conosco sobre este tema, diz que é um tema de governo e está sendo debatido pela Assembleia Legislativa e não conversa conosco”, afirma Leite.

Com isso, ele acredita que conquistas da categoria estão ameaçadas. “Nós, trabalhadores da Cemig, a gente tem uma corporativa de trabalho que envolve acordo coletivo que foram construídos ao longo dos últimos 70 anos. A gente sabe que, no momento em que a Cemig for privatizada, esse acordo vai ser atacado, precarizado”, avalia o coordenador do Sindieletro-MG.

“Hoje, os trabalhadores da Cemig possuem plano de saúde que a empresa busca precarizar nesse movimento, dizendo que temos um plano de saúde no modelo que não é compatível com o do mercado, que nós temos vantagens que não são compatíveis com o modelo de mercado”, acrescenta o sindicalista.

Empresa e governo reagem às críticas

Em notas enviadas ao Estado de Minas, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (Sede) negaram haver um processo de sucateamento e destacaram o plano de investimentos para os próximos anos, que chega a R$ 22,5 bilhões até 2025. “A Cemig esclarece que eventual debate sobre a privatização da Cemig diz respeito ao seu controlador majoritário, o Estado de Minas Gerais, à Assembleia Legislativa e à população mineira, não cabendo à companhia qualquer atuação nesse sentido”, disse a estatal na nota enviada ao Estado de Minas.

“O governo de Minas, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, tem buscado fortalecer o protagonismo da Cemig na prestação de um serviço de qualidade ao cidadão, pautando-se nas melhores práticas para a execução das atividades da empresa independentemente das discussões de temas, como privatização e desestatização”, informou a Secretaria de Desenvolvimento.

Tanto a Cemig quanto a Secretaria de Desenvolvimento lembraram os planos de investimentos de 2021 a 2025. “A Cemig informa ainda que realiza atualmente o maior plano de investimentos da sua história, com foco absoluto em Minas Gerais: R$ 22,5 bilhões (2021 a 2015) na geração, transmissão, distribuição, geração distribuída e comercialização de gás”, diz nota da estatal, que se defende ainda das críticas em relação às investidas fora de Minas Gerais. “Isso representa uma mudança em relação ao que foi feito no passado, quando se investiu em participações fora de Minas e foram realizados pagamentos de dividendos a acionistas acima do mínimo obrigatório”.

“Dessa maneira, a Cemig recentemente aprovou o maior plano de investimentos de sua história. Focado em ativos de geração, distribuição e transmissão de energia em Minas Gerais, o novo plano conta com orçamento de mais de R$ 21 bilhões para o período de cinco anos”, informou a Sede. “Ela está executando o maior plano de investimentos da história, R$ 22 bilhões, mas se amanhã tivermos alguém à frente do estado querendo fazer politicagem e coisa errada, essa situação vai se repetir”, disse o governador Romeu Zema em entrevista ao Estado de Minas.

Em relação às críticas dos trabalhadores, a Cemig afirma em nota que “mantém uma intensa política de valorização de seus funcionários. Prova disso é que, recentemente, apresentou proposta de reajuste salarial superior a 11%, índice também aplicado a todos os benefícios pagos aos funcionários. A proposta foi aceita por 14 dos 16 sindicatos que representam empregados da Cemig, sendo que os dois sindicatos que ainda não aprovaram estão atualmente deliberando sobre o tema”. (MM)

Memória: Tentativa frustrada a década de 1990

Em 1996 e 1997, pressionado pela renegociação da dívida de Minas Gerais, o governo Eduardo Azeredo, firmou acordo de refinanciamento da dívida e logo depois encaminhou a privatização do Banco do Estado de Minas Gerais e, diante das dificultadades para privatizar a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), estruturou uma operação de venda de 32,93% do capital ordinário (com direito a voto) da estatal mineira. Para atrair investidores, o governo mineiro associou às ações um acordo de acionistas que daria aos novos sócios poder semelhante aos detidos pelo estado com controlador.

No início de 1997, o grupo norte-americano AES/Southern Electric e o Banco Opportunity pagaram R$ 1,13 bilhão pela participação na Cemig, com um acordo de acionistas assinado em maio daquele ano. Com vários assentos no Conselho de Administração, os sócios privados indicaram também o vice-presidente da Cemig e dois diretores. Criticado e questionado desde que foi acionado, o acordo de acionistas virou disputa judicial no governo do sucessor Itamar Franco.

Em 1999, apenas dois anos após a venda das ações, o acordo de acionistas foi revertido na Justiça. Após empreender uma batalha contra as privatizações, principalmente de Furnas, para onde chegou a mandar militares, Itamar promulgou uma emenda na Constituição mineira criando dificuldades para a transferência do controle de estatais para a iniciativa privada, assim como no caso de venda parcial de empresas. Além da necessidade de realização de um referendo com a população mineira ficou estabelecido que é necessária a aprovação da maioria dos deputados estaduais.

Fundada em 1952 pelo então governador de Minas Juscelino Kubitschek, a Cemig surgiu para dar suporte ao desenvolvimento econômico do estado, com o fornecimento de energia para empresas que se instalariam em Minas a partir da ação do governo com base no binônimo “energia e transporte”. A empresa foi suporte da estrutura de fomento ao desenvolvimento econômico criado em Minas Gerais e que levou à industrialização do estado.

Fonte: Estado de Minas, por Marcílio de Moraes

item-0
item-1
item-2
item-3