O indevido processo legislativo na desestatização da Eletrobras



O indevido processo legislativo na desestatização da Eletrobras

“Tal é o poder da lei que a sua elaboração demanda precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos.” As palavras de Victor Nunes Leal, em artigo de 1945, nunca estiveram tão atuais. Os legisladores brasileiros têm abusado, deturpando cada vez mais a própria competência de fazer leis.

Exemplo disso é a traquinagem feita com a MP 1.031/2021, sobre a desestatização da Eletrobras, cujo projeto de lei de conversão transformou o art. 1º num monstrengo de 1.202 palavras. Só o § 1º desse dispositivo ocupa mais de duas páginas, tamanhos os jabutis impostos em benefício de grupos de interesse bem organizados. Como o sistema de vetos presidenciais brasileiros é peculiar ma non tropo e admite veto a artigos inteiros, mas não a partes, a técnica legislativa foi manuseada para impedir o veto às extravagâncias legislativas, que derrubaria toda a desestatização. A política pública tornou-se refém de interesses específicos.

Escrever leis não é amontoar palavras, arrancando vantagens como se fossem o resgate de um sequestro. O devido processo legislativo (Constituição, art. 59 ss.) tem sua aplicabilidade definida pela LC 95/1998 – à qual os parlamentares devem obediência, especialmente quanto à estruturação normativa e à função ocupada pelos artigos, parágrafos e incisos. Basta ler o art. 7º da LC 95 – “O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação…” – para constatarmos que o processo legislativo foi deturpado.

As leis devem ser “redigidas com clareza, precisão e ordem lógica”; os artigos precisam ter seu conteúdo restrito “a um único assunto ou princípio” e os parágrafos destinam-se a expressar “os aspectos complementares à norma enunciada no artigo e as exceções à regra por este estabelecida” (LC 95, art. 11, caput e inc. III, als. “b” e “c”). Nada disso foi respeitado na conversão da MP 1.031.

Como alertou o Professor Paulo Modesto em recente artigo, trata-se de outra “situação de fraude ao devido processo legislativo”. E quando cogitamos de legisladores atuando em fraude, o problema é muito mais sério: leis em desvio de finalidade, a corromper o exercício dos mandatos.

Quais seriam as consequências dessa conjugação de desrespeito à Constituição e à LC 95? Estaríamos diante da possibilidade de veto a partes formais do artigo que, em substância, constituem dispositivos autônomos? Poder-se-ia cogitar de controle judicial que preservasse a essência da MP 1.031, modulando sua constitucionalidade por meio de supressão da eficácia das parcelas abusivas? Mas este tema é igualmente desafiador, pois pode bulir com outras fronteiras, delimitadoras da competência do Poder Judiciário. Aqui, aproveitando as palavras de Nunes Leal, estamos tratando já de manipular os materiais explosivos.

Por EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

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