Um dos maiores massacres cometidos pelo Estado no Brasil contemporâneo, os chamados crimes de maio de 2006 completam 16 anos nesta semana, sem resolução. O Movimento Independente Mães de Maio, nascido em reação a esse evento, segue na luta por justiça e mira o Ministério Público (MP) em suas denúncias.
Naquele ano de 2006, em apenas nove dias – entre 12 e 21 de maio – policiais com e sem farda executaram 425 pessoas e desapareceram com outras quatro no estado de São Paulo. As matanças seguiram ao longo dos dias seguintes, vitimando mais 80 civis. Foi um revide.
Tendo jovens, negros e periféricos como alvo, a ação dos agentes do Estado foi uma retaliação a ataques que haviam sido feitos pouco antes pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e que resultaram na morte de 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais.
Como uma forma de responder às pressões das familiares organizadas, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou, em 2013, a Lei 14.981, que estabelece o 12 de maio como o “Dia Mães de Maio”. A atuação do mesmo Estado que reconhece a data como de luto, no entanto, é marcada ao longo desses 16 anos por arquivamentos, investigações inconclusas e a criminalização das mães dos jovens assassinados.
É por isso que o Ministério Público, órgão que tem como função a fiscalização e o controle dos poderes do Estado, está no centro das críticas atuais do movimento Mães de Maio. Nesta sexta-feira (13), será feito um ato em frente à sede do órgão na capital paulista.
“Nós somos vítimas do MP. Eles matam nossos filhos de novo, a cada canetada”, enfatiza Débora Maria da Silva, fundadora do movimento e mãe de Edson Rogério Silva dos Santos, gari assassinado aos 29 anos.
Um dos casos emblemáticas disso a que Débora se refere foi um ofício assinado por dezenas de promotores de justiça poucos dias depois daquela semana sangrenta de 2006. Nele, os representantes do Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE-SP) saúdam o Comando Geral da Polícia Militar (PM), afirmando “reconhecer a eficiência” da PM em “reestabelecer a ordem pública”.
Promotora do MP diz que mães são traficantes
Mas as denúncias das familiares das vítimas da violência estatal sobre a atuação do MP ganharam novas camadas recentemente. Um vídeo em que uma promotora de justiça busca criminalizar o movimento de mães passou a ser usado em tribunais de júri por advogados de policiais acusados de praticar extermínio.
No vídeo em questão, a promotora Ana Maria Frigério Molinari afirma, durante uma audiência, que “após as mortes de seus filhos em maio de 2006”, as mulheres que integram o movimento de direitos humanos “passaram a gerenciar os pontos de vendas de drogas, com o apoio da facção criminosa PCC”. Nas palavras da representante do MP, as “biqueiras” teriam sido herdadas pelas mães dos jovens assassinados.
“Como que uma promotora de justiça fala isso, sem provas, e não acontece nada?”, se revolta Débora, ao lembrar que seu filho tinha carteira assinada e, no dia em que foi morto, estava com atestado médico por conta de uma cirurgia que tinha feito na boca.
“São estereótipos que revelam as múltiplas opressões que atravessam a experiência dessas mulheres, todas negras, pobres, que moram nas favelas. É a criminalização da maternidade negra como uma política de Estado”, caracteriza Dina Alves, advogada e doutora em Ciências Sociais.
“E a gente sabe o quanto a ideia do ‘traficante’, essa categoria política produzida, é importante para que essas instituições possam seguir produzindo corpos matáveis e puníveis”, complementa.
Vídeo contra Mães de Maio é usado em júri de policiais
Em fevereiro de 2021, um vídeo criminalizando o movimento foi veiculado durante o júri popular que julgou o ex-PM Victor Cristilder Silva Santos e o guarda civil metropolitano Sérgio Manhanhã, acusados de participação na chacina de Osasco e Barueri, que matou ao menos 17 pessoas em 2015.
O advogado dos agentes do Estado, João Carlos Campanini, exibiu aos jurados 122 prints do Facebook de Zilda Maria de Paula, que perdeu seu único filho na chacina de Osasco. Entre eles, fotos em que Zilda participa de manifestações com as Mães de Maio. Em seguida, o advogado passou o vídeo caluniador de Molinari. O policial e o guarda foram absolvidos.
“Está proibida a reunião e manifestação política de mães, parentes, familiares e amigos dos alvos da violência de Estado?”, questiona uma nota de repúdio com mais de mil assinaturas de movimentos sociais, instituições, juristas, pesquisadores e parlamentares.
“Ao fazer dos registros dessas manifestações peça de inversão de acusação no tribunal, esse é o recado que se passa: não se manifeste, não se organize, mesmo que seu filho seja brutalmente executado, pois isso poderá ser usado contra você num tribunal”, denuncia a carta.
As Mães de Maio, junto com a advogada Dina Alves, já haviam protocolado uma provocação ao MPE-SP para que o órgão adote medidas contra a promotora e impeça a circulação e o uso do vídeo em tribunais. Nada foi feito. Depois do júri de Osasco, novo ofício foi feito pela Defensoria Pública e a Conectas Direitos Humanos.
Em resposta, o promotor de justiça Arthur Pinto Lemos Júnior afirmou que o vídeo deve ser “repudiado”, mas que o órgão “pouco - ou nada – tem a fazer”.
“É como se o Ministério Público estivesse simplesmente lavando as suas mãos”, avalia o advogado Gabriel Sampaio, da Conectas. O ofício foi enviado, então, ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e segue pendente de julgamento.
Arquivamento rápido, investigação sem fim
Para as Mães de Maio, chama a atenção a celeridade das respostas negativas das instâncias estatais aos pedidos do movimento. Foi o caso, por exemplo, da Ação Civil Pública apresentada em 2019 pedindo medidas reparatórias aos familiares das 564 vítimas das chacinas.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou a ação, justificando que os crimes prescreveram. “Pedimos agora que seja julgada nas instâncias superiores, como Recurso Especial e Recurso Extraordinário, no Supremo Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal”, explica a defensora pública Fernanda Balera.
Por outro lado, a investigação dos crimes de maio que está sendo feita há uma década pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), órgão do Ministério Público, ainda não foi concluída.
“Estão segurando esse relatório. Por quê? Nem o resultado da exumação do corpo do meu filho eles dão, que foi feita há 10 anos. É a tática deles. Criminalizam as mães e montam uma investigação amarela para desclassificar nosso pedido de federalização”, denuncia Débora.
Apontando falhas nas apurações dos órgãos estaduais sobre o caso, as Mães de Maio e a Defensoria Pública pediram a federalização do caso em 2010. O Ministério Público Federal, no entanto, arquivou também essa solicitação em 2021, alegando que não haveria necessidade de transferência de competência pois essas falhas já estariam sendo apuradas pelo Gaeco.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Gaeco e o MPE-SP questionando o motivo para a demora na investigação, a previsão para a sua conclusão e se o órgão tomou alguma providência a respeito da declaração caluniosa da promotora Ana Molinari. O Ministério Público se limitou a responder que o inquérito está sob sigilo. Sobre o vídeo, sequer se manifestou.
“Somos ingovernáveis”
“A luta das mães de maio não se limita ao viés penal. Nem à manutenção da paz social, um processo de facilitação de reconciliação para a preservação do Estado democrático de direito. Muito pelo contrário”, avalia Dina Alves: “O Movimento Mães de Maio não quer humanizar a barbárie”.
Em duas semanas, os crimes de maio de 2006 - em pleno período democrático - deixaram mais vítimas que as 434 pessoas mortas e desaparecidas contadas oficialmente ao longo dos 21 anos de ditadura militar.
“É um movimento que escancara o genocídio antinegro no nosso país. Elas propõem a construção de outra sociedade, em que a abolição da escravização seja de fato uma abolição real” expõe Alves.
“Nós não estamos lutando pelo poder. Estamos lutando por memória, verdade, Justiça e liberdade para nossos povos”, sintetiza Débora, que é hoje pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp. A ativista também ganhou, em abril, o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival de Cinema de Málaga pela atuação no filme A mãe, do cineasta Cristiano Burlan.
Débora abre um sorriso ao dizer que se alegra com o reconhecimento e lembra que não está sozinha. “Somos múltiplas, uma mãe vai puxando a outra. Isso é determinante porque a gente não sabe o dia de amanhã. E essa luta não pode parar, porque eles não param de matar, prender, torturar”.
“Somos ingovernáveis. Queremos transformação. Mães de Maio botam o pé na porta, dedo na cara de juiz, de promotor e também de comandante da polícia”, garante.
“Para mim é muito gratificante esse pulo, essa consciência. Não ficamos no luto, ficamos na luta. O Brasil... eles colocaram o joelho no nosso pescoço. Mas nunca imaginavam que a gente conseguia empurrar o joelho e respirar. A minha arma está aqui”, Débora aponta para a garganta: “Eu consigo respirar”.
Fonte: Brasil de Fato (SP), por Gabriela Moncau