A madrugada na entrada da emergência do Hospital Souza Aguiar foi longe de ser um espetáculo de horror.
O hospital não é de luxo, mas também não é um lixo, depois de uma reforma, em 2007. Melhor, sobretudo, porque a emergência foi dividida.
Olho roxo, perna quebrada, braço destroncado, vão para uma UPA ao lado.
Politraumatizados, baleados, casos graves, para uma sala de emergência, enfermaria com uns dez leitos. Situações mais agudas, direto para cirurgia ou CTI.
Parentes, amigos, acompanhantes, sinto muito.
Aguardem, suportem a angústia porque ela é dor que não mata e o pessoal está ocupado com as dores que matam.
Não é um hotel, com room service, é um posto de fronteira da vida, onde se tem de tentar impedir, a todo custo, que qualquer um passe.
Podia ser mais suave? Sim, e devia até. Mas não é o essencial.
Um hospital de emergência, no centro de uma metrópole como o Rio de Janeiro parece um terminal de ambulâncias, a cada minuto uma aportando, a trazer a desgraça de alguém.
Nunca fica deserta, porque o mal tem, como já disse Victor Hugo, o dom da ubiquidade.
Física, sim, mas social também.
Os desastres não escolhem classe e seus efeitos demoram a ter renda média, cartão “gold”, traje a rigor.
Na iminência da morte, como no parto, estamos todos nus, assustados e iguais.
Sozinhos e dependentes de quem nos cuide.
E é isso que, de uma forma bruta e doída, todos tomam, ou deviam tomar, consciência ali.
E, no meio da angústia ou da serenidade que acompanha o encontro com os limites da vida, maravilha-se com a igualdade que nos revela a todos imensos e frágeis, a um só tempo.
Alguns, infelizmente, não o conseguem.
Uma senhora – só uma – chocou-se com um grupo de moradores de rua que, lá pela uma hora da manhã, veio arrastando sua pobreza para os bancos de cimento do hospital, para deitar e dormir seu sono ali, protegido dos perigos das calçadas da madrugada.
Mas a maioria, talvez sem saber dizer, entendeu que eles eram seres tão humanos quanto os que, lá dentro, nós queríamos protegidos também.
Talvez nem eles saberiam dizê-lo, mas sabiam sentir a proteção daqueles banco o colchão macio que lhes faltava às costas.
Na noite seguinte, já no conforto com que os planos de saúde diferenciam os que têm um pouco mais dos que bem pouco ou nada têm, o ridículo fraque do porteiro do hospital particular parecia a alegoria estúpida da vaidade humana.
Que não se choca e não se assusta com o tolo e o supérfluo, mas está sempre disposta a arranjar razões as mais sofisticadas para negar seu egoísmo e não reconhecer que todos devem ter aquilo que nós próprios queremos.
É isso é que nos permite nos chamarmos civilizados sem que esta palavra seja uma blasfêmia.
Porque seríamos monstros se buscássemos razões, quaisquer razões, para negar a qualquer um, a um só que fosse, não apenas ter direito a um médico, ter direito a ser cuidado e protegido.
A vida humana é tão preciosa, tão rica, tão imensa em mim, ou nos meus, quanto naqueles homens e mulheres que se ajeitavam nos bancos de cimento do Souza Aguiar.
Se nos desaparece a capacidade de reconhecê-lo é porque já se foi, em vida, nossa humanidade.