A pandemia do novo coronavírus vai passar, mas seus efeitos serão sentidos por muito tempo. Seja na economia dos países, ou na saúde da população, os efeitos da covid-19 não vão terminar em 31 de dezembro de 2020, quando termina o decreto federal de calamidade pública. O alerta é da especialista em orçamento público e saúde coletiva Grazielle David.
Assessora da Rede de Justiça Fiscal da América Latina, e Caribe e uma das autoras da Reforma Tributária Solidária, Grazielle participou nesta quarta-feira (22) da série de debates Você Acha Justo? – com a médica de família e comunidade Júlia Rocha, que atua no SUS em Belo Horizonte, e o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sócio do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. A mediação é do jornalista Camilo Vannuchi.
“Quando a gente pensa na perspectiva do investimento social, são efeitos sanitários, econômicos e sociais que vão permanecer. Novos gastos que vão gerar problemas na saúde”, ressaltou Grazielle. “Ainda que a gente faça uma reforma tributária maravilhosa, tem o teto de gastos que é absolutamente limitante (inclusive para a saúde), uma regra muito perversa e desproporcional ao que é feito no resto do mundo.”
A Emenda Constitucional 95, votada sob o governo de Michel Temer e mantida por Jair Bolsonaro, congelou investimentos com saúde, educação, infraestrutura por 20 anos.
Fraga considera o Teto dos Gastos um instrumento tosco, para forçar uma discussão para baixo, já sabendo que a discussão é outra. “Aqui 80% do gasto público vai para funcionalismo e previdência. Nos outros países isso fica em torno de 60%”, informou o economista.
“Estamos vivendo um momento horroroso, um cobertor curto terrível que já nos pegou fragilizados. Um quadro muito complicado”, avalia. “Tem de gastar mais. Se a pandemia vai durar seis meses, 12 ou 18, tem de gastar. Mas qualquer brasileiro deveria saber que isso não existe: imprimir moeda para gastar. Temos de resolver trabalhando, estudando, investindo.”
Para Julia Rocha, investir em saúde é diferente de gasto. “Há controvérsia ao dizer que o cobertor é curto. É curto para o paciente favelado”, afirma a médica que, baseada em estudos, defende que os investimentos no setor sejam baseados na atenção primária. “Se a gente deixar que o mercado guie o sistema de saúde, a tendência é que se faça investimentos em lugares menos necessários e deixe de gastar onde é urgente”, destaca.
“O SUS precisa fazer um esforço para que seus investimentos melhorem a vida de quem mais precisa dele. Ou seja, é claro que a gente precisa investir em pontos da rede de alta complexidade tecnológica, mas precisamos de médicos de família, agentes de saúde, com condição de trabalho, com pacientes tendo acesso a especialistas, às equipes e exames complementares. Porque com um custo muito mais baixo consigo resolver problemas e criar vínculo com o paciente”, defende Júlia Rocha.
“Ressalto o tanto que é importante conhecer o contexto social da assistência em saúde. Estamos falando de questões sociais que tocam raça e gênero: 70% são pretos e pardos e tem o fenômeno de feminilização da pobreza. Não necessariamente a gente vai gerar mais saúde se investir mais recurso. Preciso direcionar esse recurso para quem mais precisa”, reforça.
Grazielle David defende uma reforma tributária solidária para conseguir mais dinheiro para financiar a saúde, especialmente o SUS, e também o enfrentamento da covid-19. “Se a gente olhar para gigantes multinacionais, que já lucravam muito, estão lucrando muito mais na pandemia”, diz. “Além de lucrarem, evadem seus lucros. Fazem manobras, remetem lucros para paraísos fiscais, onde não são tributados’, denuncia.
Para Fraga, eliminar subsídios e impostos regressivos seria uma saída. “Permitir que quem ganha R$ 400 mil por mês, ou R$ 5 milhões por ano, pague 5% de imposto é uma desfaçatez”, critica.
Segundo o economista, o modelo de tributação que se tem no Brasil é algo raro no planeta. “Se calcularmos a taxa tributária por faixa de renda, seja pelo imposto de renda, seja pelos impostos embutidos no consumo, a carga é muito horizontal. Aí já surge um aspecto muito claro: o sistema tributário bom tem de exibir progressividade, quem ganha mais, pagar proporcionalmente mais”, ensina. “O fato é que temos um sistema todo furado e uma tributação do capital leniente. Em termos absolutos ela precisa mudar.”
O economista mudaria, por exemplo, o regime do Simples para profissionais liberais, que considera como gasto tributário. “Tudo precisa ser debatido para que sociedade possa decidir de maneira consciente. Toda tributação indireta no Brasil precisa passar por uma reforma também”, afirma.
Fraga lembra, ainda, que o gasto público com saúde no Brasil é menor que o gasto privado. “Inclusive menor proporcionalmente que os EUA, que é considerado o extremo do sistema”, compara. E considera que se ocorrer crescimento na demanda desse serviço, por meio do setor público, o gasto vai subir e isso cria uma demanda importante numa situação orçamentária do Estado brasileiro precária.
Armínio Fraga afirma ser um defensor do Sistema Único de Saúde. “Acho que o SUS precisa ser fortalecido, ter mais recursos, mas se fala em eficiência as pessoas pensam que se quer sempre cortar. E na outra ponta, não querem dar mais dinheiro se não tiver mais eficiência.
A médica Júlia Rocha rebateu. “Pensando em eficiência, quando a gente consegue exercer nossas habilidades, a gente é bastante eficiente”, comparou. “Tenho me dedicado a entender quem pensa o que vai acontecer com meu paciente. Meu poder é muito pequeno diante de um presidente que decide que não vai pagar o auxílio para que as pessoas fiquem em casa. Por mais eficiente que seja o sistema, estamos tentando encher o balde furado. Quero me esmerar no cuidado com o paciente, mas está todo mundo na rua precisando brigar para sobreviver”, ressalta.
Rede Brasil Atual