Na contramão do mundo, Brasil desmonta investimentos em energia renovável



Na contramão do mundo, Brasil desmonta investimentos em energia renovável

Enquanto o mundo inteiro amplia seus investimentos estatais em geração de energia renovável, o Brasil caminha na direção contrária. Diante do processo de privatização, a Eletrobras passou por um desmonte desde 2013: o investimento na empresa caiu de R$ 16,36 bilhões naquele ano para apenas R$ 3,12 bilhões em 2020, conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base nos relatórios da própria companhia, que tem 84% de sua geração voltada às hidrelétricas.

Na mesma toada, dados a que O TEMPO teve acesso, por meio de documentos da Petrobras, mostram que a estatal tem desinvestido em suas usinas de biodiesel. Conforme o “Relatório sobre a revisão das demonstrações financeiras intermediárias” da Petrobras Biocombustível S.A. (Pbio), datado de 31 de março deste ano, “esta operação está alinhada à otimização de portfólio e à melhora de alocação do capital, visando a maximização de valor para seus acionistas”. Ou seja, o Brasil abre mão de investir no combustível renovável para enriquecer ainda mais os acionistas da empresa, que dividiram lucro recorde de R$ 136,3 bilhões só no primeiro semestre deste ano.

A Petrobras tem em seu portfólio hoje três usinas de biodiesel: uma em Quixadá (CE), outra em Candeias (BA) e mais uma em Montes Claros, no Norte de Minas. Contudo, todas estão extremamente subutilizadas. A cearense sequer está em operação: a produção é zero, o chamado “estado de hibernação”. O complexo mineiro, conforme dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), tem capacidade para gerar 545,5 metros cúbicos de biodiesel por dia, mas entregou apenas 307,4 m³ a cada 24h em 2021 – um fator de utilização (FUT) de apenas 56,3%. Ou seja, praticamente só a metade do seu potencial.

O biodiesel é um combustível renovável obtido a partir de um processo químico denominado transesterificação. O produto tem matéria-prima vegetal ou animal, mas no Brasil a principal fonte sempre foi o óleo de soja. A gordura animal do boi, frango e porco também é bastante utilizada. Para a Petrobras, a PBio não é prioridade desde 3 de julho de 2020, quando a empresa divulgou a intenção de vender todas as suas ações na companhia de biocombustíveis.

Oficialmente, a Petrobras informa que lançou, ainda em 2020, o Programa Biorefino 2030. A iniciativa inclui projetos para a produção de uma nova geração de biocombustíveis avançados, produzidos em refinarias, como o diesel renovável e o bioquerosene de aviação (BioQAv). Esse primeiro produto, segundo a estatal, já é testado em três linhas de ônibus em Curitiba. Já o BioQAv vem do óleo vegetal e está em fase de testes. A ideia da companhia de energia é investir US$ 600 milhões no programa até 2026.

Para Thiago Silveira, economista do Observatório Social do Petróleo, o investimento no chamado diesel verde e no BioQAv faria sentido se fosse complementar às usinas de biodiesel, não como projeto substitutivo. “Do ponto de vista financeiro, ela (a Petrobras) tem condições de manter todas (as plantas sustentáveis). Não é preciso abrir mão (das usinas de biodiesel) para poder investir em novas tecnologias. O plano de gestão de 2022 até 2025 prevê investimento de US$ 2,8 bilhões em sustentabilidade. Mas, é para descarbonização da operação (de refino de petróleo), não para a produção de combustível verde ou de energias renováveis. É só uma otimização de processos dos combustíveis fósseis”, diz.

Ainda segundo Thiago Silveira, esse posicionamento da Petrobras, favorável somente à exploração do pré-sal para aumentar os dividendos a serem distribuídos para os acionistas, é problemática até para o posicionamento da empresa internacionalmente. “É preocupante porque (acontece) no momento em que o mundo está investindo em energia renovável. As próprias petroleiras estão se tornando empresas de produção de energia (limpa). Estão saindo só do foco dos combustíveis fósseis. A Petrobras está fazendo o contrário. Então, não coloca só em risco a biodiversidade, a sustentabilidade do Brasil, mas da própria empresa, porque ela vai deixar de ser um player mundial (em energia renovável)”, afirma.

Muito além de suas ações em biocombustíveis, a Petrobras vendeu suas participações em energia eólica nos últimos anos. Os quatro parques que a empresa tinha foram todos repassados à iniciativa privada. O último deles foi o Mangue Seco 2, na cidade de Guamaré (RN). A operação rendeu R$ 32,97 milhões à companhia.

Pelo lado da Eletrobras, além da queda de investimento, a empresa cortou o número de empregados nos últimos anos antes da privatização. Sem expansão, o corpo técnico é duramente afetado. Em 2013, eram 24 mil trabalhadores no grupo. Um ano antes da venda, esse dado caiu praticamente pela metade: 13,8 mil postos ativos, conforme o Dieese, com base em dados dos relatórios anuais da empresa.

Para Cloviomar Cararine, economista do Dieese, a falta de investimento prejudica o Brasil para além da geração de energia renovável, porque também força a importação de conhecimento por falta de especialização da mão de obra. "Não estamos pensando no nosso parque de engenheiros, que deveria receber investimentos agora. Quando a gente precisar, vamos ter que importar tudo isso. As estatais e empresas privadas de outros países, por conta da pressão de tratados e acordos firmados, estão investindo nisso. Mas, por aqui estamos trazendo estatais estrangeiras para atuar no setor e vender nossas estatais. É uma loucura. Você poderia gerar empregos, elaborar cursos técnicos e formar mão de obra pelo investimento (em energia renovável)", diz.

Na avaliação do economista do Dieese, o Brasil vai na contramão de outros países do mundo ao privatizar seu setor energético. Para ele, a iniciativa privada não tem interesse na energia renovável no momento. "Por uma série de fatores, o Brasil vem abandonando essa estratégia. Temos um processo de geração de energia no qual o importante é o lucro. Quando a energia renovável se tornar rentável, as estatais vão correr atrás para entrar no setor. No caso da Eletrobras não será mais uma política de Estado investir em energia renovável. O controle dos investimentos está na mão dos acionistas privados”, afirma.

Por outro lado, em entrevista à agência Reuters, o CEO da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., projetou que o investimento anual na empresa será de R$ 15 bilhões ao ano – o triplo de 2021 e em patamar semelhante aos anos de 2011 e 2013. Segundo ele, a companhia voltará a participar de leilões. “A Eletrobras não vinha participando dos leilões do setor porque não tinha capacidade financeira para investir. Agora, com a privatização, vai poder voltar a participar”, disse.

Potencial energético desperdiçado

Dados da plataforma Our World in Data mostram que a matriz energética brasileira depende do petróleo em 38% – a principal fonte entre todas, seguida da hidráulica (29%), gás natural (13%), carvão (6%), eólica (6%), nuclear (1%) e a solar (1%). Outros tipos de energias renováveis resultam em 6% da oferta do País. A dependência do Brasil dos combustíveis fósseis é maior que a média mundial, que está em 31%.

Entre os países desenvolvidos, só os Estados Unidos dependem mais do petróleo que o Brasil (39% da matriz). Por outro lado, a dependência matriz brasileira da energia hidráulica, que é renovável, está bem acima da mundial (29% contra 7%), o que mostra o potencial da Eletrobras, desmontada pela falta de investimentos nos últimos anos. Se as gerações eólica, solar e de outros tipos renováveis forem somadas, o Brasil tem 41% de sua oferta considerada limpa. Um potencial que seria ainda maior com mais investimento do poder público.

O Relatório do Conselho Global de Energia Eólica em 2022 tem um capítulo somente dedicado ao Brasil. O documento ressalta que o Brasil ultrapassou no ano passado a marca dos 20 gigawatts de energia eólica gerada – o que representa cerca de 70% da oferta da América Latina.

O conselho coloca o Brasil como potência por três fatores: já ter um marco regulatório que amplia a competitividade da energia eólica; facilidade de acesso a financiamentos; e um terceiro motivo que está ligado à fragilidade do sistema hidrelétrico – a baixa capacidade dos reservatórios no ano passado, diante da crise hídrica.

Ainda assim, o relatório coloca a necessidade de investimento em usinas alto-mar como próximo passo para aumentar a competitividade do Brasil nessa fonte renovável. O decreto de Bolsonaro que cria regras para esse tipo de parque eólico foi classificado pelo conselho como "longamente esperado" pelo mercado.

Na energia solar, o potencial brasileiro também chama a atenção. Érika Garcia é CEO da Finehra Energia, empresa que investe em usinas fotovoltaicas e criou um benefício conhecido como ticket verde, no qual funcionários de empresas recebem descontos na conta de luz, como um tíquete-alimentação. Para ela, a falta de investimento e a privatização de empresas de energia são sempre prejudiciais.

"Todas as privatizações acabam tendo como resultado um aumento de preço dos produtos e serviços, em especial nestes exemplos citados. Isso porque nenhum investidor aceita deixar dinheiro na mesa. Se estão acostumados a vender o litro do biodiesel por R$ 1, por qual razão esta empresa aceitaria receber menos?", diz. "A necessidade de diversificar a matriz energética é indispensável e do ponto de vista ambiental a energia está no centro do desafio climático", completa Érika, que aposta na solar como líder da matriz brasileira até 2050.

Fonte: O Tempo, por Gabriel Ronan

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