Mais de 7,5 milhões de pessoas vivem nas capitais de nove estados brasileiros abrangidos pelo bioma Amazônico. Para elas, a destruição da floresta não é a ameaça mais direta, mas sim a falta de infraestrutura crônica nas zonas urbanas.
Nessas cidades, moradores que vivem sem acesso a direitos básicos previstos na Constituição brasileira – como saneamento básico, energia elétrica e moradia digna – são em sua maioria negros, pardos ou indígenas.
Historicamente fragilizadas pelo processo de colonização da Floresta Amazônica, essas populações são mais vulneráveis a eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas, como enchentes e deslizamentos.
O diagnóstico foi obtido por uma série de pesquisas do projeto Amazônia Legal Urbana, que traçou um panorama da segregação social nos conglomerados urbanos de sete das nove capitais situadas no bioma.
A desigualdade dentro da desigualdade
A Amazônia Legal engloba Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Tocantins e parte do Maranhão.
A pesquisa mostra que, embora a desigualdade regional no Brasil desfavoreça o Norte e o Nordeste como um todo, essas regiões têm no seu interior grupos mais segregados do que outros.
“Essa vulnerabilidade não é uma vulnerabilidade universal. Então a gente quis trabalhar na perspectiva de demonstrar que existem desigualdades etnicorraciais e de gênero que perpassam esse ordenamento territorial e que isso vai reverberar também nas condições de saúde da população.”
A avaliação é de uma das integrantes do projeto Amazônia Legal Urbana, a doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Andrêa Ferreira.
“Mulheres negras e os homens negros, as mulheres indígenas e os homens indígenas estão em situação de maior vulnerabilidade nesses territórios”, resume a pesquisadora.
Manaus vive sequência de cheias históricas
A maior cidade da Amazônia legal é Manaus (AM), onde vivem mais de 2,2 milhões de pessoas. Ao analisar as condições do material de parede das residências, as pesquisadoras descobriram que indígenas, seguidas de pardas e das pretas, são os grupos que apresentam a menor proporção de acesso a casas feitas de alvenaria com revestimento, e a maior proporção de uso de materiais inadequados para construção de moradias, como madeira reaproveitada ou taipa.
Esses moradores foram os principais afetados pela cheia histórica do rio Negro no ano passado. O fenômeno atingiu mais de 400 mil pessoas, a maioria habitantes de periferias urbanas.
O registro do volume das águas do rio Negro, realizado desde 1902 pelo Porto de Manaus, mostra que episódios como esse estão ocorrendo com cada vez mais frequência. Das dez maiores cheias contabilizadas, metade ocorreu nos últimos dez anos.
“Se pensarmos as mudanças climáticas de forma universal, a gente não atende à realidade desses territórios segregados. A gente precisa pensar que essas mudanças vão impactar de forma diferenciada e vão ser mais agudizadas em populações que já estão em situação de maior vulnerabilidade”, reafirma Andrea Ferreira.
Macapá, Belém e Cuiabá
Segundo o projeto Amazônia Legal Urbana, em Macapá, capital do Amapá, 53% das mulheres indígenas não têm acesso à água canalizada. Entre as mulheres pretas, o índice é de 51%, e, entre as pardas, 48%.
Já entre a população indígena de Belém (PA), 37% das mulheres e 49% dos homens não possuem acesso à rede de água encanada disponibilizada pelo município. Na capital paraense, o mesmo serviço está disponível a 27% dos negros e negras, a 28% das mulheres pardas e a 29% dos homens pardos.
Nas pesquisas, outro dado revelador é de Cuiabá (MT). Entre os moradores que não têm acesso à rede elétrica, 15% são homens e mulheres indígenas. E apenas de 1% a 2% são pessoas brancas.
“Assim como em Belém, em Macapá as vulnerabilidades se diferem substancialmente entre homens e mulheres, repercutindo no aprofundamento das desigualdades de gênero”, aponta trecho da pesquisa.
Racismo estrutural e ordenamento urbano
Cada cidade tem sua particularidade, mas, segundo as pesquisadoras do projeto Amazônia Legal Urbana, a origem da segregação é uma só: o racismo estrutural.
“De vez em quando, em alguns locais, a gente vai ver as populações se intercalarem. Às vezes as pessoas indígenas estão em situação pior, às vezes são as pessoas pretas e às vezes são as pessoas pardas”, afirma a doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Amazônia Legal Urbana, Emanuelle Góes.
“Então haverá oscilações, mas a situação é sempre pior para esses grupos, nos quais o racismo, nas suas diversas manifestações, vai atuar”, completa.
Duas cidades que ainda serão estudadas no âmbito do projeto Amazônia Legal Urbana: Porto Velho (RO) e Palmas (TO). As pesquisadoras dizem que objetivo é colaborar para mudanças concretas no ordenamento urbano de cada uma das capitais.
Segundo Andrêa Ferreira, o foco é influenciar a elaboração dos planos diretores dos municípios, regionalizando as estratégias de adaptação e mitigação frente às mudanças climáticas.
“Essas populações precisam estar contempladas nos planos diretores, que regem toda a estrutura municipal. Precisamos pensar de que forma podemos elaborar e contribuir com ações e projetos que realmente possam responder a essas mudanças climáticas, contemplando esse olhar das desigualdades raciais e de gênero”, observa a especialista.
IPCC: eventos extremos matam 15 vezes mais em periferias
Ao redor do mundo, os impactos da mudança climática já provocaram perdas e danos para pessoas e ecossistemas, mas as consequências são ainda mais graves para a população urbana marginalizada, a exemplo de moradores de favelas e periferias.
Na última década, habitantes dessas regiões em todo o planeta morreram 15 vezes mais por secas, enchentes e tempestades do que aqueles que vivem em áreas seguras.
O dado está no segundo volume do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (ONU), publicado em fevereiro deste ano.
Segundo o documento da ONU, as mudanças climáticas foram responsáveis por reduzir o crescimento econômico, ameaçando as seguranças alimentar e hídrica. Assim, atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para 2030 fica cada vez mais difícil.
“A grande mensagem do Grupo 2 do IPCC nesse relatório é que a mudança climática é um brutal agravador de desigualdades e um perpetuador de pobreza”, afirmou Stela Herschmann, especialista em Política Climática do Observatório do Clima.
“A justiça climática precisa entrar na ordem do dia, e esse relatório é a demonstração mais cabal já feita de que já estamos vivendo um contexto de injustiça climática, onde os impactos adversos de eventos climáticos extremos variam por diferenças na exposição e vulnerabilidade, com regiões como a África e a América Latina sendo desproporcionalmente afetadas”, complementou.
Por Murilo Pajolla, Brasil de Fato (AM)