Em 25 de julho foi comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha. Há 10 anos, o Instituto Odara vem promovendo o Julho das Pretas, uma jornada de eventos sobre as pautas das mulheres negras durante todo o mês.
Este ano, o tema escolhido para esta jornada foi Mulheres Negras no Poder: Construindo o Bem Viver.
Nesta entrevista, o Brasil de Fato conversou com Joyce Souza Lopes, coordenadora do projeto Pretas no Poder: participação política, representatividade e segurança de ativistas negras, do Instituto Odara.
Brasil de Fato: Segundo o IBGE, há apenas 2% de mulheres negras no Congresso Nacional. Como essa sub-representação das mulheres negras na política impacta o cotidiano dessas mulheres?
Joyce Lopes: Temos apontado esse dado de 2% de mulheres negras no Congresso Nacional como uma das expressões da violência política de raça e gênero contra mulheres negras. A sub-representatividade é uma expressão do racismo estrutural na esfera política institucional. É o mesmo fundamento de sub-representatividade de todo espaço que a colonialidade branca instituiu como espaço de poder. Nós somos minoria no judiciário, na medicina, nas engenharias, na economia… Quando a gente pensa a ocupação desses espaços na perspectiva da representação, a gente corre o risco de nos contentarmos com o preto único, com a meritocracia. Quando a gente trata sobre representatividade, devemos partir do dado demográfico que nos informa que 54% da população brasileira é negra, e que as mulheres negras formam o maior grupo populacional do país, sendo 28%. Então, a conta não fecha, né?! Se somos 28%, não há possibilidade de representatividade em uma taxa de 2% ocupação de cadeiras eletivas, então é uma lacuna gritante e extremamente violenta. O impacto dessa expressão do racismo estrutural são os racismos institucionais. Um grupo que é maioria social é condicionado a incidir enquanto minoria nos espaços de tomada de decisão. E como minoria é, mais uma vez e cotidianamente, violentada de diversas formas, pelo não reconhecimento da ocupação legítima, o menosprezo, as microagressões, tentativa de silenciamento, ameaças, isolamento político, constrangimentos, são diversas formas em que o patriarcado e o racismo agenciam esse cotidiano.
Nós temos relatos de piadas, microfone cortado na plenária, perseguição de carro de parlamentar, visita de autoridade na casa da parlamentar na tentativa de intimidação... Quem é que vai somar força a essas mulheres negras nesses espaços em que são condicionadas a serem minoria? Só nós mesmos, só nós mulheres negras, por isso que a gente tem suscitado movimentos de canto a canto do país para reinvindicação de políticas e ações de impulsionamento de candidaturas e eleições de mulheres negras para que a gente consiga reverter de fato esse quadro de violência política contra mulheres negras que condiciona essa taxa de 2% de ocupação de cadeiras eletivas.
Como garantir que mais mulheres negras cheguem aos cargos de decisão política?
Com reparação história. A gente nem sequer se aproximou em mais de um século após a abolição! A gente tem batido na tecla da abolição inconclusa, porque a gente não tem alcançado parâmetros de cidadania, de liberdade, de autonomia. Se a forma atual de promover reparação histórica é através de políticas públicas, o Estado deve agenciar políticas públicas que garantam a proporcionalidade de ocupação dos cargos de decisão política. Se nós mulheres negras somos 28% da população, é justo que ocupemos, no mínimo, 28% das cadeiras relacionadas aos cargos de decisão política. Isso quer dizer uma legislação que garanta participação segura na disputa eleitoral e no cumprimento do mandato, mas também políticas de promoção de equidade na corrida eleitoral, como garantia orçamentária, assessoria jurídica, assessoria parlamentar, democratização do horário eleitoral, um judiciário que se encarregue em extinguir a taxa de impunidade e a baixa responsabilização das instituições e dos sujeitos que cometem violência política de raça e gênero contra mulheres negras. Então, na contramão de todas essas reivindicações ditas democráticas, por representatividade, políticas de reparação, o Congresso Nacional promulgou, em abril desse ano, a PEC que anistiou os partidos que descumpriram a cota mínima de mulheres e negros nas eleições de 2020.
Os próprios representantes partidários se absolverem no congresso. Além de reparação histórica, para garantir que mais mulheres negras cheguem aos cargos de decisão política, é necessário também uma inclusão política. A gente precisa muito mais do que uma reforma, a gente precisa estruturar um sistema político sobre outras bases, com outros fundamentos que o Estado democrático de direito ou a República não dão conta.
O tema do Julho das Pretas de 2022 é justamente Mulheres Negras no Poder, construindo o Bem Viver. Qual a importância de pautar essa discussão no Julho das Pretas em ano eleitoral?
Mulheres negras têm pautado a ocupação dos espaços estatais de decisão política já faz algum tempo. Elas estavam participando massivamente na fundação de diversos partidos de esquerda, na década de 70, de 80, que inclusive hoje as invisibiliza. Até a participação direta em disputas eleitorais se tornaram mais expressiva nas campanhas de 2020. E essa maior expressividade tem a ver com a movimentação política de mulheres negras a partir do assassinato de Marielle Franco em 2019, do que tem sido chamado de Efeito Sementes, que é essa reivindicação e o levante de mais mulheres negras candidatas. Mas também tem a ver com a Marcha de Mulheres Negras de 2015, que reuniu em Brasília mais de 50 mil mulheres de todas as regiões do Brasil, que teve como principal documento uma carta com reivindicações a favor de um novo pacto civilizatório pautado pelo bem viver. Então, muitas mulheres negras candidatas de todo o Brasil partiram das fileiras da marcha de 2015 ou foram impulsionadas por esse grande movimento. Então, nós como movimento de mulheres negras reconhecemos o esforço, a estratégia política e afirmamos o nosso apoio àquelas que têm se colocado politicamente na disputa, especialmente as que são nomeadas pelo movimento.
Agora, temos dito também que compreendemos essa estratégia não como acesso ao poder, e sim como possibilidade de incidência política. Porque o poder tal como está posto, nessa estrutura colonial, patriarcal, racista que é o Estado brasileiro não nos compete, não irá nos agregar e não devemos querer ser integradas. Ou seja, a curto prazo é importante que as cadeiras sejam ocupadas, a longo prazo, o poder que queremos é o do bem viver, é o de uma vida digna, em plenitude com nossa ancestralidade, que a gente não precise colocar na mesa e reivindicar os mínimos sociais ou o atendimento de necessidades básicas.
O bem viver não cabe em um projeto de campanha eleitoral ou em um mandato. Mas, atualmente, um mandato de uma mulher negra pode dar sustentabilidade para parte de nossas demandas políticas que são emergentes. Como dizia Carolina Maria de Jesus, na década de 40, “o Brasil precisa ser governado por quem conhece a fome”. E hoje a gente diz que conhecemos a fome, conhecemos o racismo, conhecemos o patriarcado, mas também conhecemos experiências de quilombo, de quilombismo e temos um projeto em construção, que é o bem viver. Então, é importante pautar isso em 2022, que é um ano eleitoral, mas não começamos a pautar isso agora. Então é importante reconhecemos que projeto de nação não se pauta em dois anos ou em quatro anos.
Pode explicar para nós, por gentileza, o que é o projeto Pretas no Poder do Instituto Odara, e como ele tem atuado nesse cenário?
O título do projeto é Pretas no Poder: participação política, representatividade e segurança de ativistas negras. Então, desenvolvemos desde 2021, com o objetivo de fortalecer a representatividade, através da participação política de mulheres negras candidatas, parlamentares e defensoras de direitos humanos no nordeste brasileiro. A gente tem em vista o fortalecimento de uma rede de apoio que garanta segurança a essas mulheres, suas famílias, comunidades. Realizamos ações e agendas relacionadas a campanhas eleitorais, de mandatos e atividades políticas que estão alinhadas aos movimentos de mulheres negras na região, sobretudo a partir de experiências de mandatas coletivas. Bem como temos atuado na perspectiva de mobilizar setores da sociedade civil para o enfrentamento à violência de raça e gênero contra mulheres negras.
Uma das formas de enfrentamento é justamente garantir maior representatividade numérica e qualitativa. Temos trabalhado na perspectiva de potencializar nossos votos e agendas políticas para conquista de direitos para população negra. Então, na perspectiva de traçar caminhos com essas mulheres, a gente tem agenciado coletivamente algumas ações, como dito, prioritariamente no nordeste, como o Março de Lutas, a partir de nossa articulação enquanto rede de mulheres negras do nordeste, que nesse terceiro ano seguiu com a agenda de ações coletivas protagonizada por mulheres negras, com a temática central de promoção da participação política e enfrentamento à violência política contra mulheres negras.
Também lançamos recentemente a campanha Pretas no Poder!, junto com a articulação de organizações de mulheres negras brasileiras, planejamos para até o mês de outubro uma série de ações através das redes sociais com o objetivo de trabalhar a educação política, discutirmos a função do voto, da democracia, que democracia é essa que está posta, provocar os partidos sobre a falta de investimento na candidatura de mulheres negras, sensibilizar ações políticas protagonizadas por mulheres negras já eleitas, apoiar e incentivar o voto em mulheres negras comprometidas com as pautas de superação das desigualdades e defesa dos direitos humanos e apresentar estratégias de proteção a essas mulheres.
Então, outra ação do projeto foi a realização do mapeamento sobre violência política contra mulheres negras candidatas e parlamentares de todo o nordeste. A partir de nossa articulação em rede, fizemos um levantamento que resultou em um dossiê denso e bastante crítico sobre a questão, material inédito em termos regionais. A publicação desse material do mapeamento pode subsidiar ações e projetos na região nordeste, e o entendimento da diversidade de mulheres negras no Brasil, bem como se configura como uma das referências para o nosso trabalho na perspectiva de elucidar a função do voto e da democracia, provocar os partidos e outras estruturas do sistema eleitoral sobre a falta de investimento em candidaturas de mulheres negras, visibilizar políticas protagonizadas por mulheres negras já eleitas e incentivar o voto em mulheres negras comprometidas com a luta contra desigualdades como já foi dito. Na ideia de articular novas ações de enfrentamento também à violência política de raça e de gênero.
Bom, o projeto Pretas no Poder tem como perspectiva, de modo geral, o processo de diálogo com a sociedade e possíveis novas representações, tendo em vista gerar reflexões sobre toda essa temática. A gente também vislumbra e temos nos empenhado no tensionamento para consolidação de uma democracia plurirracial, diversa, que realmente dê conta de estruturar uma sociedade em direção ao fim das opressões e organização de um outro modo de vida, que acreditamos ser o bem viver.
Durante a programação do Julho das Pretas, foi realizado um encontro entre ativistas e parlamentares negras e indígenas. Qual a importância da articulação entre esses movimentos para a construção desse projeto de nação discutido durante o encontro?
Nós realmente temos em mente que mulheres negras e indígenas são o contigente populacional com maiores condições para pensar e gestar um projeto de nação que garanta o respeito à diversidade e à dignidade da existência de todos os seres e energias com as quais co-habitamos em nossos territórios. Então, foi um encontro de mulheres negras, mas convidamos as companheiras indígenas, e na oportunidade firmamos a renovação de nossa aliança de parentesco afro-indígena, que foi pactuada em julho de 2004 na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.
No encontro, a gente construiu juntas uma Carta Aberta à Sociedade, apontando as questões que são inegociáveis para mulheres negras e indígenas na disputa por poder. Então, foi mais uma oportunidade de entendimento sobre os aspectos e as noções de acesso a direitos, sobre a incidência política, sobre o que entendemos enquanto bem viver, e tudo isso a partir das perspectivas, experiências e dos saberes de mulheres que nos revelam mais uma vez a pluralidade cultural, geracional, territorial, de sexualidade, de mulheres e dos povos negros e indígenas no Brasil. Então, a gente sai desse encontro com a certeza de que nossas cosmopercepções são semelhantes. Nós temos muito a trocar nesse processo de defesa e construção do bem viver.
Fonte: Brasil de Fato (BH), por Gabriela Amorim