Em umas das regiões mais ameaçadas do Cerrado brasileiro, a arte se soma às vozes das mulheres que se movimentam para transformar um lugar
Agricultoras, camponesas, nordestinas e “cerrativistas”. São essas mulheres, residentes e resistentes do Oeste da Bahia, que Conchita Silva, também defensora do bioma Cerrado, retrata e homenageia em sua obra a luta dessas protetoras da natureza. O Projeto “Gravando a Resistência: desde a década de 70, prefiro…” foi um dos contemplados pelo edital da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, da Prefeitura Municipal de Correntina, a 830 km de Salvador.
Com o recurso conquistado, Conchita dará continuidade à visibilização das guardiãs dos saberes e culturas ancestrais. “A coragem, a representatividade e a afirmação das múltiplas identidades dessas mulheres me estimularam a escutar e registrar quem são elas e contribuir, por meio da arte, para a visibilidade de seus papéis na luta e resistência dos territórios correntinenses com seus rostos e vozes gravados em xilogravuras”, conta Silva sobre o trabalho, composto por xilogravuras e artes de rua como cartazes e “lambe-lambes”.
Estudante de artes visuais e neta de geraizeiros, Conchita também diz que a inserção da palavra “prefiro” aconteceu por essa ser uma expressão muito manifestada pelas personagens. “Prefiro… Prefiro não morrer, mas prefiro morrer lutando” é uma das afirmações escritas em letras manuais na xilogravura que retrata a agricultora familiar do município de Correntina, Dona Ana, uma das personagens deste trabalho.
A resistência vem das mulheres e da arte
Correntina, localizada no Oeste da Bahia, é uma das regiões mais ameaçadas do Cerrado brasileiro. Desde a chegada e expansão desenfreada do agronegócio na década de 70, a região se viu envolvida em conflitos socioambientais, principalmente a violência contra a população local relacionada aos casos de grilagem de terras e à concentração de água voltada aos grandes empreendimentos. Segundo o portal de notícias Mongabay, com base no Diário Oficial, o Cerrado baiano perdeu quase 2 bilhões de litros de água por dia para o agronegócio durante a pandemia da Covid-19.
São centenas de povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares que dependem da biodiversidade do Cerrado para sobreviverem na Bahia. São elas também que se articulam e protagonizam movimentos de luta em defesa de seus territórios e da conservação da biodiversidade e das águas. O Rio Arrojado é um forte exemplo. Um dos mais degradados pela ação das empresas, ele é símbolo de identidade para as comunidades geraizeiras, de fundo e fecho de pasto, quilombolas e tantas outras que aprenderam com seus ancestrais que para viver é preciso manter o Cerrado vivo.
Articuladas em movimentos e organizações, as populações do Oeste da Bahia já protagonizaram diversos levantes contra a ofensiva desordenada das grandes empresas produtoras de commodities. A “Revolta da Água” foi uma delas e conseguiu alcance na mídia nacional. No entanto, há quem seja importante nesses processos de luta, mas permaneça com suas vozes silenciadas. “Sempre escutamos que as mulheres são as mais atingidas, que são as que mais se articulam, mas, quando vamos ver, o protagonismo é sempre tomado pelos homens. Por isso quero trazer o olhar das mulheres, amplificar as vozes delas sobre a luta”, conta Conchita.
As mulheres do Rio Arrojado
Além de Dona Ana, outras camponesas e ribeirinhas ganham traços de xilogravura para contar suas histórias e de seu povo. “Aqui é todo mundo de paz, Ninguém quer guerra. Só queremos nossos rios preservados, só isso. Ninguém vai morrer de sede nas margens do Arrojado, ninguém!”, essa frase, que marcou a luta da população de Correntina, é da professora do meio rural Marinês, e se encontra com os traços cuidadosamente desenhados por Conchita.
A camponesa e mulher negra, como gosta politicamente de se descrever, Dona Nena, também ganha formas artísticas e sua luta e de seus filhos pelo Cerrado se reveste da tinta vinda da umburana. Nena passou dez anos lavando roupa no vale do Rio Arrojado e hoje, a agente de saúde também se considera uma defensora do Cerrado e das riquezas que o bioma traz para sua comunidade e sociedade.
Também recebe traços e poesias de luta no decalque de seu sorriso a geraizeira e ribeirinha Aliene. Diariamente, a correntinense luta em defesa da permanência de sua família em seu território para garantir que gerações futuras tenham o direito de existir com as águas e o Cerrado vivos. Junto com sua representação, pode-se ler o texto da poetisa e também moradora e filha do Cerrado, Jaqueline Honório:
“E não permitiremos que esse grito seja esquecido. Não permitiremos que esse grito morra. Porque não permitiremos que o nosso povo morra.”
O trabalho de Conchita mostra que a luta das mulheres do oeste da Bahia traduz uma realidade que acompanha a trajetória do Brasil. Como não lembrar do legado da mineira Carolina Maria de Jesus ao ouvir as falas e conhecer a história das mulheres baianas? Dona Ana, dona Nena, Marinês e Aliene estão presentes nos quatro cantos brasileiros. São elas que estão em movimento para manter o Cerrado, a Amazônia, a Caatinga e todos os nossos biomas em pé. E são elas que merecem ter suas vozes ecoando país e mundo afora. Vozes que falam em defesa dos territórios conservados, da vida e de quem somos.
Fonte: Mídia Ninja, foto de Conchita Silva e texto de Méle Dornelas