Mulheres cis e trans contam como é viver nas calçadas de São Paulo



Mulheres cis e trans contam como é viver nas calçadas de São Paulo

"Pode filmar, sim, que hoje tô gata". Cabelos cacheados ao vento, Kundaline senta numa mureta na praça da Sé, ao lado de uma carroça onde Paula e Natália, outras duas mulheres trans, guardam seus pertences e cuidam dos cachorros, que correm ao redor. Ao fundo, centenas de pessoas que, como elas, passaram a viver em situação de rua na capital paulista durante a pandemia de covid-19.

Divulgados em janeiro pela prefeitura de São Paulo, dados do censo dessa população indicam que, nos últimos dois anos, aumentou em 31% a quantidade de pessoas vivendo nas ruas da cidade.

Realizada de outubro a dezembro de 2021, a pesquisa mais recente contabiliza 31.884 pessoas vivendo nas ruas da cidade, o que representa 7.540 a mais do que o constatado no último censo, realizado em 2019, quando foram registradas 24.344 pessoas nessa situação.

A Pastoral do Povo de Rua e o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) afirmam que os números estão subnotificados, por conta de uma metodologia que consideram equivocada, já que os lugares foram visitados somente uma vez e apenas durante a noite. A prefeitura, sob gestão de Ricardo Nunes (MDB), contesta.

Gênero e cor

Embora haja indícios de que os números podem ser ainda mais alarmantes, os dados oficiais apontam que, de 2015 para cá, o número da população em situação de rua na capital paulista mais do que dobrou e engloba, no mínimo, 31.884 pessoas. Dessas, 70,8% são negras.

Ainda que o perfil de quem vive nas calçadas continue majoritariamente masculino e com idade média de 41 anos, houve o aumento de mulheres e pessoas LGBTQIA+ nessas condições.

De acordo com a pesquisa da prefeitura, entre as pessoas vivendo na rua em 2019, as mulheres cis representavam 14,8% e são, agora, 16,6%. As trans, travestis, agêneras ou não binárias eram 2,7%. Atualmente são 3,1%.

"Muitas dessas pessoas sofrem quando há necessidade de se recolher nos Centros Temporários de Acolhimento (CTA)", diz Tatto Oliveira, homem trans do coletivo LGBTI Núcleo de Resistência, referindo-se a um dos equipamentos públicos municipais.

"Porque a pessoa pode se sentir desconfortável ao não pertencer a certa padronização dos corpos. Imagina para um homem trans passar uma noite em um quarto com homens cis? É impossível ter paz", ilustra Tatto. "E para usar um simples banheiro? Tomar banho é um martírio, muitos desses locais não têm porta ou qualquer forma de privacidade".

Pessoas trans

Junto com outros coletivos, como o TransAfeto, o grupo de Tatto faz ações de distribuição de comida e roupas na praça da Sé, com foco em pessoas trans.

Vivendo nas ruas do centro já há uma década, Simone afirma que vê, empiricamente, o crescimento do número de pessoas vivendo ali desde que a pandemia de covid-19 começou, em março de 2020.

Assim como Kundaline, a forma como os marcadores de raça, gênero e classe se manifestaram na sua trajetória está intimamente ligada aos acontecimentos que a levaram até as ruas.

Simone morava na zona norte de São Paulo em uma "casa de família". Fazia ali serviços domésticos — ocupação cuja mão de obra, no Brasil, é composta 92% por mulheres e 66% por pessoas negras. Simone se encaixa em ambas as estatísticas. Depois que os filhos da patroa passaram a agredi-la fisicamente, resolveu que teria mais paz nas calçadas do que lá dentro.


Atualmente, aos 51 anos, dorme em albergues e se alimenta por meio de doações. Simone gesticula como se botasse a mão no bolso ao comentar sobre o prédio "bonito" da prefeitura de São Paulo, a poucos quarteirões dali, um símbolo de como as instâncias governamentais estão geograficamente tão perto, mas socialmente tão distantes do povo.

"Se eles soubessem usar o dinheiro, melhorava para muita gente que está na calçada. Porque as pessoas entram em depressão. Nisso, eles não pensam. Eles pensam só em estar lá, com o bolso cheio de dinheiro", avalia.

Simone encontrou dificuldade para fazer o cadastro que lhe daria direito ao Auxílio Emergencial. "Não consegui, não. Deixei para lá".

Carregando seus pertences em um saco plástico e uma bolsa de pano com os dizeres "Rio de Janeiro", Simone olha para baixo. "É, minha filha, não é fácil, não. Não é fácil dormir no chão aí, não, ó. Passa rato aí no chão. Você entendeu? Passa rato no chão".

"Aqui as pessoas possuem um conhecimento absurdo"

Kundaline tem 19 anos. Nasceu, foi adotada e cresceu na cidade mineira de Piranga. Teve uma boa relação com a mãe — "até eu me identificar e me reconhecer como travesti", expõe. "Aí as coisas mudaram entre a minha família, num todo. E falei: 'Não, não tem como eu ficar em casa'".

Migrou para São Paulo e, depois de algumas andanças, viveu um curto período na Ocupação Artística Ouvidor 63, no Anhangabaú. Hoje tem uma "maloca" junto com "uma trans finíssima" embaixo de um viaduto na Liberdade. Mas faz um tempo que não passa por lá. Artista e profissional do sexo, Kundaline está há cerca de um mês vivendo nas ruas do entorno da Sé.

Segundo o levantamento da Prefeitura, conflitos familiares como o que fez Kundaline sair de casa são apontados como os principais motivos de pessoas trans estarem em situação de rua. São 34,7% dos casos, seguidos pelo uso abusivo de drogas (29,5%) e pela perda de trabalho e renda (28,4%).

Sobre sua recente experiência nas ruas, Kundaline a define como uma forma de acessar aprendizados. "Porque é babado, aqui tem muita gente com um potencial muito rico, entende? Pessoas que possuem um conhecimento absurdo".

"Conheci pessoas, usei pedra. Eu uso de tudo, sabe? E entendo que essa questão do vício é totalmente diferente de acordo com a singularidade de cada um", afirma.

"Eu não sou a pedra que eu uso. Eu não sou a rua onde eu durmo", afirma Kundaline: "Eu sou eu".

"É um projeto político"

"Não me contempla ficar dormindo no chão. E não contempla ninguém aqui. Mas está todo mundo acostumado. É desde a colonização, desde que os portugueses chegaram aqui, mataram os povos indígenas, trouxeram os negros da África num navio negreiro. Nada disso é à toa", resume Kundaline.

Para ela, "tudo tem uma forma de ser resolvido. Mas é um projeto político. Um projeto social que quer ver a gente na m****. Quer ver mesmo a gente se f******, e é isso. E a gente sabe que é isso".

"E está todo mundo vendo que está se f******, mas está todo mundo em transe, sabe? Isso me assusta. Porque vai piorar. Está piorando", constata a jovem travesti. "Aí chega a polícia e bate? Um policial negro batendo numa criança negra é o quê? É o fim. Sabe? É contradição", analisa.

Educação formal

Assim como as outras 93,5% das pessoas que vivem nas ruas paulistanas, de acordo com a prefeitura, Kundaline frequentou a escola. Mas não tem certeza se tem vontade de cursar uma faculdade.

Diferentemente de Paula. Indígena trans vinda do Pará, ela deu praticamente uma aula de filosofia durante uma conversa informal, regada a refrigerante e cigarro — mas não topou gravar entrevista.

Depois de comentar sobre o "nível de ignorância" da esposa do governador de São Paulo — referindo-se a uma fala de Bia Doria sobre "não ser correto dar marmita" para pessoas em situação de rua —, Paula criticou a abordagem costumeira que a imprensa faz delas, focada em sensacionalismo e sofrimento.

Dizendo gostar muito de estudar, Paula, por sorte, conseguiu ler todos os livros que havia dado um jeito de comprar, antes que eles fossem "roubados pelo 'rapa' da prefeitura".

Na praça da Sé, foram unânimes os relatos de que, se as barracas não forem desarmadas e os pertences guardados antes da chegada da zeladoria da gestão municipal, cedo pela manhã, os objetos são levados.

O governo municipal foi procurado pelo Brasil de Fato, mas não respondeu até o fechamento desta matéria.

"Eu não vou morrer"

Argumentando que a polícia foi "inventada para defender quem tem propriedades", Kundaline comenta que, se tivesse o poder, "ia acabar com a polícia militar": "Tipo: 'Gente, chega, já deu o tempo de vocês, sabe? Todo mundo pode se recolher'".

Em seguida, vislumbra, desenvolveria outra forma de "combater o crime". Com a simplicidade de quem diz algo óbvio, a dançarina constata: "Porque se combate o crime dando teto para a gente morar. Dando comida para a gente comer. E as drogas? Redução de danos!"

"Não quero te ver morta". Kundaline escutou essa frase de sua mãe. Lançado em 2022, o dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021, elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), revela que o estado paulista lidera o ranking de mortes dessa população no país.

O levantamento aponta que, pelo 13º ano consecutivo, o Brasil figura como o que mais assassina pessoas trans no mundo. E indica, ainda, que a expectativa média de vida de quem é trans no país é de 35 anos.

Mas Kundaline garante que vai contrariar a estatística. "Eu não vou morrer. Eu não vou. Eu não vou. Não vou. E é isso, essa é a forma que eu busco de me confirmar como uma pessoa que é travesti e que vai viver", sorri.

Paula também. Prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no ano passado e tem certeza que teve um bom desempenho na prova. Quer ser médica e se dedicar ao cuidado dos idosos.

Por Gabriela Moncau e Pedro Stropasolas, Brasil de Fato (SP)

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