MST: Programa de Educação no Campo forma 50 novos médicos veterinários



MST: Programa de Educação no Campo forma 50 novos médicos veterinários

“Somos todos sonhadores e protagonistas dessa história. Esse é um momento de muita alegria e comemoração, mas também é um momento de reafirmar nossa luta enquanto Turma Especial de Medicina Veterinária”, disse Vanessa Alves Pires, agora médica veterinária, no discurso de formatura da Turma Kênia Ferreira. Na última sexta-feira (1º), 50 Sem Terra de acampamentos e assentamentos da reforma agrária de 14 estados brasileiros conquistaram seu diploma de Medicina Veterinária na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

A formatura da terceira turma ocorreu no Auditório da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (FAEM), Campus Capão do Leão em Pelotas. Com diploma na mão, os médicos veterinários se comprometem em contribuir com o desenvolvimento do campo e da produção das famílias assentadas e acampadas.

Participaram da cerimônia pais, familiares e amigos dos formandos, de diversos estados, dentre eles estão: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Tocantins, Bahia e Maranhão. Também estavam presentes representantes da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e reitores, vice-reitores e docentes de quatro universidades do Uruguai e da Argentina: a Universidade Uruguaia da República, a Universidad de Rosario, a Universidad de La Plata e a Universidad de Río Cuarto.

Para a coordenadora pedagógica do curso, Cátia Gonçalves, é extremamente importante garantir que os Sem Terra conquistem esses espaços. “Formamos 50 educandos e serão eles que acompanharão o projeto de desenvolvimento da Reforma Agrária Popular, e contribuirão com as áreas de acampamentos e assentamentos, bem como na organização social da classe trabalhadora", pontua a educadora.

“Um simples obrigado é insuficiente para expressar o tamanho da nossa gratidão a todos que nos ajudaram a chegar no encerramento deste ciclo. Somos eternamente gratos aos nossos pais, professores, colegas e aos movimentos sociais, em especial o MST”, disse Ezequiel Gonçalves, médico veterinário, durante a colação.

Política pública

Ao todo, 140 educandos já se formaram médicos veterinários por meio do programa, nas três turmas já oferecidas, segundo a coordenadora do programa, Cátia Gonçalves. A quarta turma está no sexto semestre e já está confirmada a abertura de uma nova turma, com edital previsto para o segundo semestre deste ano.

“Já formamos 44 educandos na primeira turma, a Turma Adão Pretto, 46 na segunda turma, a Turma Hugo Chaves, e 50 na terceira turma, a Turma Kênia Ferreira”, diz Cátia.

Para além da graduação de Medicina Veterinária, as famílias Sem Terra também podem estudar outros cursos superiores ofertados pelo Pronera. No Rio Grande do Sul, já foram formadas e seguem em formação turmas de graduação de Agronomia, pela Universidade Federal Fronteira Sul, em Pontão, e em História, pelo Instituto de Educação Josué de Castro, em Viamão.

Orgulho para a família Sem Terra

A formatura é considerada como fruto da luta de famílias do MST e de outros movimentos sociais do campo. “Para nós é um motivo de alegria e orgulho. Sem dúvida esses novos médicos veterinários vão trazer muito desenvolvimento para nossas áreas e também para o conjunto da agricultura familiar”, disse o dirigente nacional do MST pelo Rio Grande do Sul, Ildo Pereira.

Ele lembrou que a luta por educação de qualidade no campo é uma das principais bandeiras do MST e, por isso, formar mais uma turma especial de Medicina Veterinária é uma vitória do movimento. “Espero que cada jovem que se formou na UFPel, pelo Pronera, volte para nossos acampamentos e assentamentos e ajude na qualificação das nossas produções, principalmente na área do leite que é um produto perecível e que exige qualidade para que chegue no consumidor”, destacou.

Quem topou o desafio de se especializar na área de produção de leite foi o médico veterinário Alan Bruno Ferreira, pois essa é a área que mais se identificou no curso. O objetivo do Sem Terra é retornar para a terra de sua família, que fica no Assentamento 8 de Abril, município de Jardim Alegre, no Paraná, e contribuir com a produção animal, principalmente com o leite nutricional.

“Eu quero trabalhar essa questão de reprodução e nutrição voltada para produção de leite. Quero melhorar e ajudar a produzir em alta escala e com qualidade o leite das propriedades da minha região”, destacou.

Rosicléia Santos, do Assentamento 14 de Agosto, em Ariquemes (RO), também conquistou seu diploma de médica veterinária e agora busca trabalhar com bovinos leiteiros e também na área da saúde pública. “Sempre tive vontade de fazer Veterinária e poder contribuir mais na sustentabilidade e no avanço da produção do grupo coletivo onde moro e nas áreas de assentamento. Por lá há muitas demandas e pouca assistência”, assinala a educanda.

Educação no campo

Neste ano as famílias camponesas comemoraram os 24 anos da criação do Pronera, resultado das reivindicações e pressão dos movimentos sociais populares do campo. Ele foi lançado por meio da Portaria Nº. 10/98, do extinto Ministério Extraordinário de Política Fundiária, e posteriormente instituído como política pública pela Lei 11.947, de 16 de junho de 2009 e regulamentado pelo Decreto 7.352/2010.

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre os anos de 1998 e 2018, o Programa ofertou 499 cursos em parceria com 94 instituições de ensino, atendendo 186.734 beneficiários, desde a Educação de Jovens e Adultos (EJA) até programas de pós-graduação.

“Nós, enquanto MST, conseguimos mostrar que a luta não é só pela terra, lutamos por todo um projeto de humanização a esse povo que vai ser assentado, seja com estrutura básica de treinamento, seja por políticas públicas de produção. Também para colocar os Sem Terra nas escolas e em Universidades Públicas, para acessar o ensino superior”, afirma Ferreira.

"É de grande importância para mim como mulher, negra e Sem Terra, ocupar um espaço em uma universidade federal, ainda mais em um curso de Veterinária que é bastante elitizado. Pois reafirma que as lutas que foram feitas pelos movimentos sociais do campo e vem sendo feitas tem sim resultados”, alega Rosicléia, filha de assentados.


Dificuldades do Pronera

O Pronera vem sofrendo diversos cortes, desde 2016, com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Desde então, as turmas beneficiadas pelo Pronera sofreram drásticas reduções orçamentárias. “As maiores dificuldades que enfrentamos foram com a entrada do governo Bolsonaro, que consequentemente gerou corte de verbas; com o enfrentamento do negacionismo das Turmas Especiais da Medicina Veterinária dentro da universidade; e a pandemia também gerou dificuldade com atraso do curso e danos psicológicos”, relembra Rosicléia.

Além disso, Alan Bruno destaca que a problemática enfrentada pelos Sem Terra na graduação também ocorreu por parte dos docentes do curso de Veterinária. Cerca de 30 professores do quadro acadêmico fizeram um abaixo assinado destacando que os mesmos não concordavam com a inserção dos educandos, filhos de assentados e agricultores, via Pronera. “Não dá para admitir que só uma minoria consiga acessar a universidade. Nós sabemos que há uma desigualdade muito grande para se acessar uma universidade pública”, reforça.

Ainda de acordo com ele, existe uma diferença muito grande no ensino básico entre educandos do campo, da periferia, da classe média e alta, o que influencia na hora de acessar um curso superior via vestibulares e Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “O Pronera me proporcionou disputar uma vaga na universidade com pessoas que saíram do mesmo local que eu, então houve uma igualdade. Deveria existir um programa que abrangesse essas diferentes realidades, como favelas, comunidades, escolas do campo e tantas outras, para que o acesso à educação superior seja igualitário” justificou Ferreira.

De acordo com ele, muitos dos professores e parte da sociedade encaram o acesso à universidade via Pronera uma regalia dos filhos de Sem Terra, dos assentados do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Ele reforça que esta não é a realidade. “É uma política pública de democratização do ensino público que deveria ser copiada e repetida em todos os cantos do Brasil”, declara Alan Bruno.

Organização e companheirismo

Apesar das dificuldades, algo que marcou os educandos foi a união e organização da turma, herdada dos movimentos populares. A Terceira Turma Especial de Medicina Veterinária teve a menor taxa de reprovação no curso. “O que mais me marcou foi o grande esforço, o companheirismo da turma e a organização do curso para fazer com que todos pudessem conseguir chegar até o fim. Acho incrível como todos se ajudaram", relata a educanda Rosicléia.

Para Alan Bruno, essa capacidade de organização vem do trabalho de base realizado pelo MST. No dia a dia do movimento, a estrutura seguida pelos assentados e acampados levou à criação de núcleos de base, grupos de estudos, grupos de produção e de certificação orgânica.

“Esses pontos são fundamentais para a gente avançar e conquistar novos espaços dentro da universidade e tentar mudar a opinião de alguns professores e da sociedade sobre os Sem Terra”, pontua o médico veterinário.

Por fim, Alan Bruno reafirma a importância da organização e da luta pelos direitos do povo. “Essa tem que ser uma pauta da classe trabalhadora. Todos temos o direito de acessar educação de qualidade e ele está sendo negado. É uma obrigação do Estado garantir o acesso à educação igualitário para todos e todas”, concluiu.

Fonte: Brasil de Fato | Porto Alegre (RS), por Maiara Rauber

 

 

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