MST completa 37 anos e mostra a força da agricultura familiar durante a pandemia



MST completa 37 anos e mostra a força da agricultura familiar durante a pandemia

 Entre os dias 20 e 25 de janeiro de 1984, acontecia em Cascavel (PR), um encontro entre posseiros, atingidos por barragens, migrantes, meeiros e pequenos agricultores que perderam o direito de produzir alimentos no Brasil. Em meio à efervescência de levantes sindicais, o declínio do regime militar e a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), esse encontro deu origem ao Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, o MST.

Ali, homens e mulheres fundaram o movimento camponês nacional com três objetivos principais: lutar pela terra, pela reforma agrária e por mudanças sociais no país. No ano seguinte, em 1985, o primeiro Congresso do MST afirmava: “Sem terra não há democracia.”

I Congresso do MST em 1985/ MST

Ao longo dos anos, os objetivos foram se expandindo conforme as necessidades de cada época e das condições de dignidade aos trabalhadores do campo e também da cidade, para onde migram aqueles expulsos de seus territórios.

Em 2020, se de um lado o movimento sofria com os ataques do governo Bolsonaro, de outro lado mostrou a todo o mundo a potência da agricultura familiar e da sua organização de base, que possibilitou a doação de mais de 3 mil toneladas de alimentos durante os primeiros meses de pandemia do novo coronavírus.

Sobre isso e as expectativas para 2021, conversamos com a cearense Maria de Jesus Santos Gomes, figura histórica do movimento que participou da primeira ocupação de terra no seu estado, em 1990.

Natural de Catolé do Rocha, Maria vive no Assentamento Bernardo Marin II, no município de Russas (CE). Com 30 anos de caminhada e resistência junto ao MST, ela compõe hoje a direção nacional e o setor de educação do movimento.

Em nome de tantas Marias, ao longo da entrevista ela fala sobre o desafio do protagonismo feminino no movimento e aponta a agroecologia como saída para a crise alimentar no país.

“A opção pela produção saudável tende a crescer no Brasil e a única classe que pode ofertar alimentos saudáveis é a classe camponesa. Somos nós, os agricultores e agricultoras desse país”, ressalta.

Sobre o desmonte de políticas públicas aprofundado pelo governo Bolsonaro, além do apoio irrestrito a ruralistas e até o incentivo à violência no campo, Maria de Jesus explica as contradições pregadas pelo agronegócio e reforça que o movimento seguirá firme em defesa das bandeiras populares.

“Nós sabemos o que queremos com o campo brasileiro: nós queremos a reforma agrária popular. E como esse programa não se realizou, nós estamos muito firmes na defesa desse projeto. O agronegócio não tem capacidade de fornecer alimentos para a população brasileira, porque o propósito dele não é esse”, aponta.

Confira íntegra a entrevista, concedida ao programa Bem Viver em homenagem aos 37 anos do MST:

Quase quatro décadas após a sua criação, o MST segue como o maior movimento de massas do país, com participação fundamental em diversas pautas: alimentação, educação, política e até saúde. A que se deve esse perfil tão abrangente do movimento?

O MST é fruto, eu diria herdeiro, de todas as lutas de resistência popular e de direito ao acesso à terra no nosso país.

O nosso movimento é formado por famílias. Ele não é formado só por homens, só por mulheres ou crianças. Ele envolve toda a família, então por isso a gente não luta só pelo acesso à terra. Não temos só reivindicações econômicas, nós temos reivindicações sociais, econômicas, culturais e políticas.

Nosso movimento tem essa característica, é um movimento que tem uma natureza popular, uma natureza sindical, de massa e político. Defende um projeto político para o campo e para a sociedade brasileira. Então a construção dessa organização tão importante para os trabalhadores é uma grande esperança para o povo, para os trabalhadores, para os pobres.

A maior política de combate à fome no Brasil é a reforma agrária e nós precisamos fortalecer esta luta
Estou no movimento, este ano faz 30 anos e tem algo assim que marca muito, que são as ocupações de terra.

A gente chega com aquelas famílias, a maioria delas vão levando só um pote, um saco com roupas, um saco com alguma panela, mas a gente vai depois naquele assentamento com cinco anos e a gente já vê uma grande diferença das famílias, já vê uma melhora.

Eu diria que a maior política de combate à fome no Brasil é a reforma agrária e nós precisamos fortalecer esta luta, principalmente em um momento como este que se aprofunda as desigualdades sociais na nossa nação.

Em 2020 aconteceu um marco para o movimento, que foi o I Encontro Nacional de Mulheres. Essa é uma consequência do fortalecimento do protagonismo feminino e do setor de gênero do movimento que vêm se desenvolvendo?

Eu diria que para mim foi como um reviver a memória da construção da participação das mulheres, que ainda segue um desafio para nós.

Nesta pandemia, estamos com a campanha contra o vírus, porque a gente tem que ter a consciência que não é só o vírus da covid, mas principalmente esse vírus chamado Bolsonaro, que nós temos que enfrentá-lo.

A gente sabe que quando a sociedade está em crise, as mulheres e as crianças são as mais afetadas e, com essa pandemia, com o isolamento social, se intensificou a violência contra as mulheres, o feminicídio.

Claro que isso nos nossos assentamentos não é uma realidade e ainda bem, mas a gente sabe do desafio que a gente tem ainda da violência doméstica.

Nós, mulheres no MST, tivemos várias conquistas. Queria destacar algumas.

Essa da participação igualitária nas instâncias de homens e mulheres. Em todas as instâncias, desde o núcleo de base e no acampamento, do assentamento, até a direção nacional.

Queria destacar também a importância da educação infantil, da ciranda infantil, que foi uma conquista nossa, das mulheres.

Também temos o desafio de organização de vários temas e debates na nossa construção política e, principalmente, o feminismo camponês e popular nos dá muita esperança da construção desse projeto histórico da classe trabalhadora, da participação das mulheres com consciência, com a defesa do valor da vida, com a construção de novas relações sociais e de gênero.

Acho isso algo muito importante na construção do projeto histórico da classe trabalhadora e na construção da reforma agrária popular. Tanto mulheres, como homens, como crianças, temos que defender aquilo que a gente conquistou.

O próprio Fidel Castro tem uma frase dele que eu gosto demais: “Toda conquista só vale se soubermos defendê-la”. Então nós precisamos defender a terra e os direitos que nós conquistamos como família sem terra.

Nós não podemos abrir mão. A outra questão é que a massificação do MST será a resposta para esse estado que fechou as portas para a reforma agrária. Precisamos fazer grandes lutas neste país e essa é a minha grande esperança com o pós-pandemia.

Em meio à pandemia, o MST exerceu um papel fundamental com doações de toneladas de alimentos em todo o país. Os alimentos são fruto da produção dos próprios assentados. Que legado as ações deixam para o país? O que elas têm a nos ensinar?

Eu queria destacar, por exemplo, qual foi o estado que mais doou alimentos? Foi o estado do Paraná.

Em todo o Brasil, conseguimos fazer esse momento da doação de alimentos nos estados, mas a abundância de alimentos que temos nos assentamentos de reforma agrária do MST no Paraná é fruto de duas ações muito importantes do movimento.

Primeiro a ação do trabalho das Jornadas de Agroecologia. O estado do Paraná já tem mais de 20 anos de trabalho com a agroecologia, um trabalho intensificado e massificado.

A outra grande ação foi a formação de técnicos. O Paraná chegou a ter mais de 20 turmas de técnicos formados, filhos e filhas dos assentados e assentadas da reforma agrária.

Lá nós temos o IALA [Instituto de Agroecologia Latino Americano]. Então essa formação agroecológica, dos camponeses e camponesas possibilitou hoje a abundância de produção de alimentos nos nossos territórios, nos nossos assentamentos e acampamentos.

Então a agroecologia, a agricultura de base agroecológica, é muito importante para nós. Nesse sentido, não se trata simplesmente de ter o acesso à terra e produzir sem agrotóxicos.

Nós estamos construindo sistemas de produção agroecológica, onde estamos buscando a autonomia camponesa, a autonomia alimentar, econômica, da nossa soberania forrageira, da alimentação dos nossos animais e hídrica.

Para nós do Nordeste, essa é uma soberania fundamental, a soberania hídrica, que agora no governo Bolsonaro, todas as políticas de apoio ao semiárido foram cortadas, mas nós, os povos do semiárido, continuamos reivindicando essas políticas, e uma delas é a água.

Nós consideramos também muito importante a soberania cultural. A defesa dos nossos modos de vida, de nossa forma de fazer os nossos alimentos, a questão do uso dos nossos alimentos locais.

A importância deles do ponto de vista nutritivo, mas também na valorização destes alimentos. E essa é a nossa grande tarefa.

É produzir alimentos saudáveis, tanto para o abastecimento das nossas famílias, como também o abastecimento da sociedade brasileira.

O governo Bolsonaro tem sido um dos maiores desafios enfrentados pelo movimento, com o desmonte de programas e políticas públicas, além do apoio irrestrito a ruralistas e incentivo à violência no campo, mas 2021 parece chegar com novos ares, o próprio Stedile nos diz isso. A expectativa é de um levante da mobilização de massas? O MST se sente fortalecido para esse propósito?

O Movimento Sem Terra vive uma ofensiva do Estado brasileiro e do capital no campo no sentido de esmagar o MST, mas a ofensiva deles têm contradições. A primeira contradição é que é impossível esmagar o MST pela sua forma de funcionamento.

Ao longo da nossa trajetória, o MST foi se adequando a cada momento da luta de classes e essa tem sido uma grande sabedoria de todas as instâncias coletivas do MST e ele dá um salto de qualidade.

Esse salto de qualidade está movido por alguns elementos. Primeiro ser um movimento nacional. Isso nos dá muito fortalecimento da nossa luta. O segundo, ter um programa.

Como esse programa não se realizou, nós estamos muito firmes na defesa desse projeto. E o agronegócio não é uma proposta que responde às necessidades do povo brasileiro.

O agronegócio não tem capacidade de fornecer alimentos para a população brasileira, porque o propósito dele não é esse.

E isso nós temos que avançar na sociedade, na compreensão desse problema que nós estamos enfrentando, inclusive de insegurança alimentar.

Eu fico muito indignada de saber que o Brasil…com tanta terra fértil, como é que o Brasil está importando arroz? Isso é um absurdo. Nosso país tem capacidade e autonomia para produzir todos os alimentos que abastece a todas as famílias do nosso país.

Nesse sentido, o movimento também é uma resposta para a fome e para a miséria de milhões, principalmente que estão nas periferias das cidades. Nós temos que pensar nesse sentido, de como é que vamos nos unir aos desempregados.

Nós estamos vivendo um momento no capitalismo em que a questão de emprego é estrutural. E a hegemonia do capital nessa conjuntura não é a hegemonia do trabalho, é a hegemonia financeira. Agora a agricultura, nós precisamos entender isso, nós não temos desemprego na agricultura.

Nós que estamos nos assentamentos não damos conta da quantidade de trabalho que nós temos para fazer. Então quero dizer que eu vejo que na saída dessa crise do capital, eu também vejo com esperança a saída de outros tipos de economias e outros tipos de modos de vida. E a agricultura é uma das possibilidades. A agricultura agroecológica, agroflorestal.

O movimento é uma grande esperança. O movimento ele não vai ser destruído, ele não vai ser esmagado, ele não vai ser isolado, ele não vai ser cooptado. O MST é a grande esperança do povo pobre, trabalhador e desempregado do Brasil.

Por isso não vão fazer grandes lutas massivas. Nós temos que questionar a questão da concentração da propriedade privada no nosso país.

E temos que exigir no Brasil um Estado que olhe para o povo. Veja, nós ainda não temos a segurança da vacina, quando o mundo todo está sendo vacinado. Então a gente precisa enfrentar tudo isso que está posto com muitas lutas, muita esperança e muita fé de que a gente vai vencer.

Fonte: Brasil de Fato

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