O Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais e as Defensorias Públicas da União, do Espírito Santo e de Minas Gerais acabam de pedir a suspeição do juiz Mário de Paula Franco Júnior, da 12ª Vara Federal de MG, responsável pelo Caso Samarco.
O pedido é vastamente baseado nas duas matérias exclusivas divulgadas pelo Observatório da Mineração e nos vídeos que revelaram reuniões frequentes do juiz Mário de Paula orientando advogados sobre como deveriam proceder para conseguir o que depois se tornou o “Sistema Indenizatório Simplificado”. O novo sistema já pagou mais de R$ 90 milhões diretamente para advogados, que recebem 10% de cada ação, conforme estabelecido pelo juiz.
As instituições de justiça pedem que o próprio juiz Mário de Paula se reconheça como suspeito diante dos fatos apresentados e, caso não o faça, que submeta os autos para análise do Tribunal Regional Federal da 1ª Região no prazo de 15 dias. Nesse caso, uma tutela provisória pode afastar Mário de Paula do caso, sendo substituído por outro juiz responsável.
O Caso Samarco é a maior e mais complexa ação civil em andamento no Brasil, referente ao maior desastre ambiental da história do país, o rompimento da barragem de Mariana em novembro de 2015, de propriedade das mineradoras Vale, BHP e Samarco – esta uma sociedade entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP.
Uma versão mais curta das duas matérias divulgadas aqui foi publicada pelo Portal UOL, o maior da América Latina. O Mining.com, maior site especializado em mineração do mundo, publicou uma matéria em inglês sobre o caso. Outros portais, como o Metrópoles e o Notícias de Mineração também repercutiram as matérias exclusivas do Observatório.
Combinação entre juiz, mineradoras e advogados
A arguição destaca que a criação de novos processos eletrônicos – boa parte sob sigilo – permitiu que as denominadas “Comissões de Atingidos” se proliferassem pelos territórios atingidos, criando “estranha relação processual entre juiz, empresas rés, as novas “Comissões de Atingidos” e seus advogados”. Hoje, já são 29 processos tramitando dentro do novo sistema em vários locais atingidos no Espírito Santo e em Minas Gerais.
Afirmam os procuradores que “revelações recentes dão conta de que a anomalia procedimental na criação desses feitos não é mera coincidência, mas decorre do fato de que essa instauração foi previamente tratada” – antes portanto dos respectivos peticionamentos em juízo – entre o juiz, os advogados das referidas novas “Comissões” e a Fundação Renova, em violação ao art. 145, II, do Código de Processo Civil.
Citando a primeira matéria publicada pelo Observatório em 11 de março de 2021 com a reunião entre o juiz Mário de Paula e a Comissão de São Mateus (ES), o pedido afirma que “a reunião não foi comunicada às partes processuais, nem foi tampouco registrada nos autos do processo”.
As falas do juiz Mário no vídeo, dizem, confirmam que o “sistema simplificado de indenizações” é produto de uma lide simulada – conluio – “repetida mais de uma dezena de vezes”. Quando uma “Comissão” ingressa em juízo, o faz porque seus advogados e as empresas previamente já fizeram “tratativas” (palavras do juiz) sobre como esses processos vão terminar. Dessas “tratativas”, lembram, não há nenhum registro nos autos, nem comunicação às Instituições de Justiça.
Os Ministérios Públicos e as Defensorias chamam a atenção para o fato de que as mineradoras nunca recorreram das “condenações quando começaram a surgir” porque “nunca houve verdadeiro litígio entre essas novas “Comissões” e as empresas-rés, senão um ajuste prévio entre elas”.
O que houve, dizem, foi “apenas uma dissimulação das partes, as novas “Comissões” e as empresas-rés (ou seu braço, a Fundação Renova)” para obter uma sentença com um conteúdo que siga os moldes daquilo que as já referidas “tratativas” haviam indicado como sendo a posição do juízo.
“Segunda divisão de atingidos”
Referenciando a segunda reportagem publicada pelo Observatório da Mineração em 17 de março, sobre nova reunião do juiz Mário de Paula agora em janeiro de 2021 com advogados de várias comissões do Espírito Santo, os procuradores e defensores afirmam que, de acordo com o conteúdo da matéria e os vídeos, fica “implícito que apenas atingidos e atingidas que adiram ao sistema instituído pelo juiz serão prontamente atendidos em seus pedidos indenizatórios”.
Quem discorda do sistema não é atendido, ressaltam. “Aqueles que, porventura, optarem por perseguir seus direitos de outra forma, por meio de matrizes de danos mais robustas, ficarão em uma espécie de “segunda divisão” de atingidos, na contínua espera de uma decisão judicial que, como anunciado, não deverá ocorrer em um horizonte próximo”.
Essa divisão seria inaceitável, reforçam. “Esse direcionamento parte de uma premissa de que só é bom, honesto e ordeiro quem concorda com o juiz, solapando a legitimidade social de todos aqueles que o contrariam”.
Sobre o dever de imparcialidade, o texto da ação destaca voto do Ministro do STF Ricardo Lewandowski no julgamento do HC 164493/PR18. Diz Lewandowski:
“A imparcialidade a que aludem os documentos internacionais e a nossa própria Lei Maior significa, antes de tudo, que aos magistrados é vedado tomar partido relativamente aos interesses que lhes são submetidos, devendo manter-se sempre em posição de absoluto alheamento quanto a estes. Tal requisito se manifesta segundo duas vertentes: a primeira, de natureza subjetiva, a qual demanda que o juiz faça sempre uma reflexão íntima, devendo perguntar a si mesmo, antes de julgar, se está ou não apto decidir com isenção; a segunda, de caráter externo, exige dele uma equidistância em relação às partes e a terceiros de maneira a preservar, aos olhos da comunidade, a neutralidade esperada de um julgador”.
Orientados pelo juiz, advogados embolsam milhões
O pedido de suspeição destaca outro aspecto importante: os mesmos advogados que propuseram as ações são os responsáveis pelos recebimentos de praticamente todos os atingidos, perante a Fundação Renova, entidade criada para a reparação do desastre responsável pelos pagamentos.
Esses advogados, que foram orientados por Mário de Paula, ainda são sistematicamente elogiados pelo juiz em suas decisões e também retribuíram os elogios em notícia divulgada pelo próprio TRF1.
Isso “privatiza o processo coletivo a um ganho de honorários multimilionário”, destacam, com uma advogada que lidera o processo chegam a receber mais de R$ 10 milhões “em menos de um ano de trabalho repetitivo, composto basicamente de upload de documentos na plataforma criada após as “tratativas” feitas com o juiz, sem qualquer argumentação ou redação de petição relevante”.
Os procuradores e defensores também chamam a atenção para o fato de que a média de tempo de decisão do juiz no caso do novo sistema indenizatório é de apenas 91 dias, do começo ao fim do processo. Em um dos casos, o procedimento começou e acabou, com a fixação da matriz de danos, em apenas 58 dias.
Enquanto isso, outros pedidos feitos dentro do acordo original esperam meses sem uma definição do juiz Mário de Paula Franco Júnior.
“As decisões vêm sendo tomadas de maneira seletiva, com os temas e partes escolhidos – e, até mesmo, estimulados – pelo juiz sendo decididos em primeiro lugar, sem que haja qualquer justificativa para tanto, ao mesmo tempo em que temas urgentes são abandonados por meses a fio”, afirmam.
Comissão de Colatina foi preterida e protocolou reclamação com base em matéria do Observatório
Preterida no processo em favor de outra comissão mais nova e alinhada aos termos do juiz, uma Comissão de Atingidos de Colatina (ES) enviou para as Defensorias e o MPF um relato, citando que diante dos graves fatos divulgados nas matérias do Observatório, gostariam de denunciar que foram ignoradas por Mário de Paula.
“Em 2020 com a abertura do sistema indenizatório pelo juiz, nosso território foi assediado por advogados, Renova, para o ingresso no novo sistema indenizatório. Essa Comissão que se reúne formalmente desde 2017, e tem trabalhado arduamente pelos direitos dos atingidos e atingidas, participando ativamente de todos os processos em curso sobre a reparação, após um longo processo de consulta, diálogo e reuniões, decidiu por buscar ingresso no sistema através de seu advogado de confiança. Ocorre, que por uma manobra não apenas não foi aceita nossa petição, como outra comissão foi reconhecida em nosso lugar”, relatam.
Diferentes orientações foram dadas para o representante da Comissão sobre o peticionamento eletrônico e presencial, citando a pandemia como impedimento. Neste jogo de empurra, a outra Comissão alinhada ao juiz foi reconhecida como legítima e elogiada por isso.
Ao assim proceder, diz a ação, “o juízo da 12ª Vara Federal (que evidentemente compreende a gestão de sua secretaria), viola o art. 139, I do CPC, não assegurando às partes isonomia, formal ou material, de tratamento ao próprio acesso à justiça, bem como o art. 145, IV, do CPC”.
Em nova resposta, juiz Mário de Paula afirma que o modelo simplificado de indenização é um sucesso
Por fim, a ação destaca que “não há condições para que os processos relativos ao desastre do rompimento da barragem de Fundão prossigam sob a condução do Juiz substituto da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte”.
Segundo os impetrantes, “o comportamento processual e extraprocessual do magistrado extrapolou, de fato, os limites estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional e pelo CPC, em várias ocasiões, em que aconselhou e constrangeu as partes, elogiou e criticou pessoas e, mesmo, Instituições de Justiça, promovendo eventos relativos aos processos em curso sem intimar os sujeitos processuais de tais feitos. Assim, é impossível, depois de tantos atos, reconstruir as bases de confiança institucional exigidas para a condução do processo de reparação do maior desastre socioambiental da história do país, que exige um juiz além de qualquer suspeita”.
Procurado para comentar o pedido de suspeição feito pelo MPF, MPMG e Defensorias da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo, o juiz Mário de Paula Franco Júnior não respondeu até a publicação dessa matéria. Caso o faça, o texto será atualizado.
Atualização às 14:11h a assessoria de comunicação do TRF1 respondeu dizendo que “hoje é feriado na Justiça Federal de Minas Gerais, por força da Lei nº 5.010 de 30 de Maio de 1966. Dessa forma, somente poderemos encaminhar sua demanda ao Juízo na próxima segunda-feira” (05 de abril).
Vale, BHP e Samarco disseram que não irão comentar. A Fundação Renova afirmou que o novo sistema “tem possibilitado o pagamento de indenização a categorias com dificuldade de comprovação de danos”.
Nova atualização: em 06 de abril, a assessoria do TRF1 enviou nova resposta ao Observatório da Mineração afirmando que o juiz Mário de Paula Franco Júnior informa que:
“Em razão de impedimentos legais, a Justiça Federal não comenta processos em andamento. Esclarece, entretanto, que o novo sistema indenizatório simplificado já foi confirmado pelo Tribunal Regional Federal em Brasília, sendo um modelo de sucesso na indenização às vítimas do Caso Samarco. Através do novo modelo, já foram indenizadas mais de 10 mil pessoas em apenas 05 meses de funcionamento. A Justiça Federal segue comprometida com o processo de reparação das vítimas do rompimento da barragem de Fundão”.
Fonte: Brasil de Fato, por Maurício Ângelo, Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, Direitos Humanos e crise climática. Fundador do Observatório da Mineração.