Enquanto os trabalhadores e trabalhadoras dos Correios seguem em greve por garantia de direitos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) avança com a privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) em meio à pandemia do novo coronavírus.
Mas, a quem interessa a entrega da estatal? Responsável pela logística de entrega das mercadorias, os Correios desempenham uma atividade importante para a sociedade como um todo, mas especialmente para o setor de comércio eletrônico.
A movimentação do governo acendeu o interesse em nomes de peso desse segmento de mercado como a estadunidense Amazon, a chinesa Alibaba e a argentina Mercado Livre.
“Estão interessadas nos Cororeios tanto as empresas do mercado de entregas, como a UPS dos Estados Unidos, que já manifestou interesse, quanto as empresas que são gigantes do comércio eletrônico, como a Amazon, que domina hoje mais ou menos 50% do mercado e é a maior do mundo. Também a Alibaba, que é a principal empresa de comércio eletrônico na China”, analisa o doutor em sociologia da tecnologia, pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), Jonas Valente.
A união da Amazon e Alibaba para a compra dos Correios é especulada desde o ano passado e o portal E-commerce apontou na terça-feira (1) que a argentina Mercado Livre, que teve grande crescimento durante a pandemia, também já demonstrou interesse em comprar os Correios.
Segundo a Federação Nacional dos Trabalhdores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), os dados dos Correios mostram que, só no ano passado, 48% da receita correspondeu ao monopólio postal de envio de cartas e os outros 52% à entrega de encomendas, aberta à livre concorrência.
Além das lojas varejistas, o mercado brasileiro de comércio eletrônico é comandado atualmente pelo Mercado Livre, Magazine Luiza, Via Varejo, responsável pelas redes de lojas Casas Bahia, Pontofrio e B2W, que é a fusão das Americanas e Submarino.
Valente também ressalta que, com a vantagem de poder entrar no país pelos Correios, “todas essas empresas brasileiras estariam em risco caso uma gigante norte-americana ou chinesa viesse competir vendendo os mesmos produtos”.
Privatização em andamento
Embora o argumento da direção da estatal para o corte de 70 dos 79 pontos do acordo coletivo seja a crise econômica e a sustentabilidade da empresa, na semana passada o governo fechou um estudo para a privatização dos serviços postais por R$ 7,89 bilhões, segundo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O consórcio selecionado foi o Postar, formado por Accenture do Brasil Ltda e Machado, Meyer, Sendacz, Opice e Falcão Advogados.
De acordo com o Ministério da Economia, a previsão é de que os estudos “tenham início imediatamente e que a primeira fase seja entregue até o final deste ano”. A alteração na Constituição, que define o serviço postal de cartas como dever do Estado e que deve ser enviada para o Congresso, também está em estudo pela pasta.
O professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), Marco Antônio Rocha, considera uma “irresponsabilidade imensa” o governo tentar promover uma privatização dos Correios neste momento de pandemia no país.
Para o economista, a administração federal está induzindo a greve dos trabalhadores com o corte unilateral dos direitos no acordo coletivo para criar um constrangimento da população em relação a esse serviço.
“O governo criar um conflito com os trabalhadores dos Correios e da Caixa Econômica Federal em meio à pandemia, onde a gente está precisando muito dessas instituições, é de uma irresponsabilidade imensa”, avalia.
Mercado brasileiro
Outra consequência prejudicial da privatização dos Correios apontada pelo economista se dá no comércio que passou a funcionar por meio das entregas de encomendas dos Correios. “Pode significar uma perda de clientela ou certos sacrifícios da margem de lucro para absorver o preço para a distribuição do produto", pontua.
Desde o início da pandemia, houve um grande incremento nas vendas online no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), houve um aumento de 400% no número de lojas online por mês. Ou seja, os Correios passaram a entregar muito mais pacotes e encomendas.
O aumento da abertura de empresas gerou empregos e renda dentro do Brasil. De acordo com a pesquisa da ABComm, houve a abertura de 50 mil empresas por mês.
Em relação aos setores, os que mais registraram aumentos nas vendas online foram calçados (99,44%), bebidas (78,90%), eletrodomésticos (49,29%), autopeças (44,64%) e supermercados (38,92%).
Amazon
De acordo com Jonas Valente, a empresa estadunidense Amazon “entrou pesado no Brasil” e vem buscando ampliar fatias de mercado por aqui.
Se a Amazon comprar os Correios, terá muito mais dados sobre as pessoas, como endereços e correspondências. Certamente estes dados serão utilizados pela empresa para turbinar seus outros serviços
Sob esse ponto de vista, a compra dos Correios pode ser uma estratégia de entrada nessa área, pois possibilitaria um ganho na escala para operar de forma nacional no país, com a utilização de uma infraestrutura logística já articulada.
O especialista ressalta que a “capilaridade gigantesca" é o atrativo de compra da estatal e ressalta a importância de ter uma empresa pública que cumpra a função social de chegar a todos municípios “com preços mais baratos, inclusive”.
“Há uma questão de alcance, de cumprimento de função social, de preço mais barato. Se os Correios forem de fato arrematados por uma Amazon ou Alibaba, a gente vai ter plataformas digitais muito poderosas com atuação em outros segmentos e que vão se fazer valer dessa capacidade de logística exatamente para conseguir crescer ainda mais no Brasil”, analisa.
O especialista em comércio eletrônico avalia que o impacto não se restringe a esse segmento. A Amazon, por exemplo, oferece desde serviços de stream, como o serviço corporativos de nuvem com a AWS, ou até mesmo uma plataforma de trabalho, que é o Amazon Mechanical Turk.
“O crescimento da Amazon pode representar uma maior desnacionalização, mais um grande agente estadunidense com muita força dentro do país, o que pode prejudicar tanto do ponto de vista econômico os concorrentes nacionais, como do ponto de vista político e cultural pelo reforço e peso que esse agente vai ganhar também na área de cultura e informação”, calcula.
Uso de dados
A compra da estatal pode trazer também um acesso a informações de bilhões de cidadãos brasileiros hoje exclusivo dos Correios, alerta Valente. A lógica de empresas como Amazon é utilizar o máximo de dados que consegue coletar para ofertar cada vez mais serviços.
Ele também aponta que a compra pela Amazon representa um grande risco de uso indevido desses informações. Nos Estados Unidos, a empresa já foi investigada por práticas predatórias de dados.
Em meados de março, o senador republicano Josh Hawley pediu a abertura de um a investigação sobre a Amazon pelo uso ilegal de dados de vendedores externos para obter vantagens na criação ou precificação de produtos de sua marca própria. De acordo com Hawley, essa é uma prática que levaria ao monopólio.
Monopólio privado?
O economista Marco Antônio Rocha alerta que a venda da infraestrutura dos Correios “não é uma regulação do setor” e não deve gerar um ambiente competitivo. Pelo contrário, pode representar um oligopólio no segmento de postais e encomendas no Brasil, em que há três, quatro grandes empresas que dominam o poder de mercado, o que considera “muito pior” do que parte do monopólio estar com a estatal.
“Você vai cair num oligopólio de poucas empresas privadas com grande poder de mercado, um sistema extremamente perverso para o consumidor, porque terá duas ou três empresas que operam basicamente como se fossem monopolistas. Você acaba caindo numa situação onde o serviço não é bom, mas é muito mais caro do que o público”, explica.
O especialista relembra o exemplo da venda da empresa brasileira de telefonia, em que houve uma quebra do monopólio estatal que não resultou em aumento da concorrência no setor que beneficiasse o consumidor, pois o segmento passou a ser controlado por três empresas com grande poder de mercado.
“Deixou o consumidor numa situação difícil em relação à troca dessas empresas. É possível migrar de uma empresa para outra, mas há um leque muito pequeno de opções e, no fundo, todas têm o mesmo problema, todas são campeãs de reclamações no Procon" afirma Rocha.
Fonte: Brasil de Fato