Suspensas desde a adoção de políticas de enfrentamento à pandemia da Covid-19, há quase três meses, Ana Maria Oliveira ainda espera, toda quinta-feira, pelas as visitas domiciliares de religiosos. Nessas reuniões, ela, que tem dificuldades de locomoção, recebia o sacramento da Eucaristia. Aos 68 anos, dona Ana, como é conhecida, nunca havia ficado tanto tempo sem experimentar o que é considerado, em seu credo, um alimento da alma. Hoje, ainda que participe de celebrações transmitidas por rádio, televisão e internet, queixa-se por sentir falta desses momentos de profissão de fé.
Integrante do grupo de pessoas que têm um perfil mais vulnerável à manifestação da doença, Ana Maria é diabética e hipertensa. Assim, além dos cuidados espirituais, reclama da suspensão de consultas para acompanhamento médico de seu estado de saúde. Para se preservar, ainda precisou abrir mão de encontros que lhe faziam bem, como os churrascos em que recebia parentes e amigos da filha, a gerente de vendas Ana Paula de Araújo, 28. Para ela, mesmo que as medidas restritivas venham sendo progressivamente flexibilizadas, a realidade cotidiana é ainda muito diferente daquela de antes do surgimento da emergência de saúde.
“Isso foi impactante para ela, que agora só mantém contato com outras pessoas por telefone”, examina Ana Paula, que precisou abrir mão dos trabalhos de uma cuidadora e, agora, tem se dedicado diuturnamente a prestar assistência à sua mãe. Embora essa dedicação não seja uma novidade, a rotina ficou mais complicada. “Em casa o tempo todo, sem oportunidade de dar um passeio, está sendo mais difícil deixá-la mais calma, mais tranquila e apaziguar essas questões… Mesmo que eu esteja aqui, ela se sente muito sozinha”, reconhece.
No Brasil, de acordo com pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgada no início de junho, quatro em dez domicílios têm a presença de pelo menos um morador idoso. São lares que, potencialmente, enfrentam desafios parecidos, em alguns aspectos, com os de Ana Maria e Ana Paula. E, em que se pese ser falsa a ideia de que pessoas idosas são necessariamente mais solitárias, a sensação de solidão é, de fato, uma das principais preocupações de profissionais que cuidam da saúde no envelhecimento.
“Muitos, ao se aposentarem, se afastam daquele espaço social do trabalho, perdem contato com colegas. Eles convivem com a morte de amigos e de familiares. A pandemia agrava esse quadro ao limitar os contatos sociais, o que pode levar ao desenvolvimento de distúrbios de humor”, avalia Marco Túlio Cintra, médico geriatra e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia seção Minas Gerais. Uma situação especialmente delicada para os 18% de brasileiros que chegaram à terceira idade morando sozinhos – conforme dados de levantamento da Fiocruz.
Inatividade
Há ainda outros fatores que desafiam a rotina dos idosos. A exemplo da dificuldade de Ana Maria em realizar consultas de rotina, Cintra acredita que as necessárias medidas de isolamento vão provocar filas de atendimento no futuro. “O setor público e o privado terão que cuidar disso”, diz. “Nos piores quadros, temos aqueles que tiveram interrompidos seus processos de reabilitação. Muitas doenças que exigem esse cuidado, como Alzheimer e Parkinson, são progressivas. Então, pode haver até mesmo uma piora nesses quadros de saúde”, lamenta.
Apesar da farta oferta de videoaulas e de aplicativos que permitem a prática de atividades físicas em casa, a tendência é que, neste momento, os idosos fiquem mais sedentários, aponta o geriatra. Uma inatividade que já vem cobrando seu preço: “Já são quase 90 dias de sedentarismo, causa de atrofia muscular, que implica mais dificuldade de andar e aumento do risco de queda”. Cintra acredita que um fator que inviabiliza a adoção de uma rotina mais ativa é o medo de, ao se exercitarem, incorrerem de um erro postural ou mesmo o receio de quedas.
Além disso, existe uma maior dificuldade em lidar com serviços online que poderiam auxiliar nessas atividades ou que poderiam trazer informações que ajudam no autocuidado. É o que atesta a pesquisadora Marília Duque, que estuda o uso de smartphones por idosos para sua tese de doutorado. “Na minha observação de campo, a maior dificuldade deles é fazer download e configurar novas aplicações. Normalmente são os filhos, os netos e os vizinhos que ajudam nessas tarefas”, situa ela, que acompanhou a rotina de pessoas com mais de 60 anos por 16 meses.
Inicialmente, Marília planejava investigar o uso de serviços virtuais voltados à saúde. Mas notou que a maioria usava, em seus aparelhos, apenas o WhatsApp, uma multiplataforma de conversas instantâneas e de chamadas de voz e vídeo. “A ferramenta foi sendo adaptada e apropriada inclusive como interface médica. É por lá que relatam como estão se sentindo, que procuram ajuda com os profissionais da saúde”, indica.
Presença
Atenta à situação de vulnerabilidade em decorrência não apenas da pandemia como também de todas as medidas implicadas para o seu enfrentamento, Marília lançou o projeto “Anjos no WhatsApp”, que estimula a população a procurar, em seus próprios contatos, pessoas idosas e se oferecer como companhia virtual por meio do aplicativo. A pesquisadora sugere também que os voluntários se empenhem no combate a notícias falsas e auxiliem na busca de informações de qualidade.
“Além das conversas em si, quando se sentem integrados com um anjo, essas pessoas vão ficar menos ansiosas, pois sabem que existe alguém disponível caso seja necessário algum apoio”, reforça Marília. Ela adverte ser importante que cada um busque ajudar idosos de sua própria rede de contatos. “O compartilhamento de dados poderia ser usado por grupos de estelionatários e golpistas, que têm nas pessoas mais velhas seu alvo principal”, diz.
“As mídias digitais são uma forma de manter a aproximação, mas não a única”, lembra Marco Túlio Cintra, mencionando como exemplo as comemorações de aniversário de uma paciente por ele atendida: “A família contratou uma carreata, com ela assistindo na janela, fizeram uma festa na rua e ela se sentiu acolhida e benquista por todos”. A ação criativa aproxima afetivamente, mesmo obedecendo às recomendações de distanciamento, ressalta.
Seja como for, é fundamental que as famílias se mantenham atentas e presentes. “É importante que exista um cuidado diário para que os idosos se sintam queridos. Estamos todos sob o jugo dessa doença, e eles ainda lidam com a sensação de estarem mais vulneráveis”, lembra a psicanalista Vera Iaconelli, complementando ser importante também executar um papel de orientação: “Vimos uma certa rebeldia, uma negação da gravidade do problema por parte de pessoas mais velhas. É importante trazer para eles informações confiáveis”, avalia.
“Além disso, muitos dos já aposentados ocupavam seu tempo cuidando de netos, recebendo visitas. Com as restrições, ficaram sem ocupação, o que é preocupante”, assegura a psicanalista.
Descartáveis
“Há uma defesa muito clara, externada por autoridades e por empresários, de que a morte de idosos em razão da pandemia não é um problema, apenas uma fatalidade. Por trás desse pensamento, identifico a ideia de que devem morrer por não serem mais produtivos e, agora, estarem impedindo que a roda da economia volte e girar”, critica Benito Schmidt, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para aqueles que estão acompanhando o noticiário e têm acesso a esses pronunciamentos, os discursos causam impacto na autoestima, opina o geriatra Marco Antônio Cintra.
“A velhice vai ser o destino de maior parte da população jovem de hoje. Será que eles vão se ver como um estorvo para a sociedade?”, provoca Cintra, acrescentando que, para além da crueldade desse pensamento utilitarista, trata-se de um estigma que não se sustenta em fatos: “A aposentadoria não significa o fim de tudo, e a pessoa idosa pode, sim, contribuir de outras maneiras com a sociedade. São inúmeras as tarefas do dia a dia que são desempenhadas por eles, que olham os netos, que ajudam a consertar eletrodomésticos e que, muitas vezes, cuidam de igrejas e estão empenhados em trabalhos voluntários”.
Dados levantados pela Fiocruz reforçam como o preconceito é infundado ao demonstrarem que mais da metade dos idosos (52,3%) tinha trabalhos remunerados antes da pandemia. “Não seria correto afirmar que os idosos representam uma população dependente. O último censo já havia apontado que os rendimentos de pessoas com mais de 60 anos são essenciais para cerca da metade da renda dos domicílios brasileiros”, alerta, em uma publicação da instituição, Dalia Romero, coordenadora do Grupo de Informação em Saúde e Envelhecimento (Gise) e integrante da equipe do estudo que ouviu 45 mil pessoas entre 24 de abril a 24 de maio.
Desde a chegada do novo coronavírus ao país, entretanto, 36% dos deles ficaram sem rendimentos ou tiveram grande diminuição na renda – índice que salta para 55% para os que não possuem vínculo empregatício. Em relação ao percentual dos que exercem alguma atividade considerada essencial, 34% continuam trabalhando durante a pandemia. Entre as mulheres, esse percentual é de 37%. Neste grupo, 42% apenas reduziram um pouco o contato social. Eles, portanto, “não apenas sofrem maior risco ante a Covid-19 em si, como também pelo enfraquecimento da seguridade social na fase de vida em que mais precisariam de proteção”, diz a pesquisadora.
Fonte: jornal O Tempo