Livro traz história da expansão do MST na rota Sul-Nordeste



Livro traz história da expansão do MST na rota Sul-Nordeste

Surgido na década de 1980 e no bojo da luta popular por direitos no país, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) hoje abraça o Brasil e o mundo. Antes disso, porém, a entidade viveu, ao longo de seu processo de expansão pelo território nacional, uma jornada de enraizamento que, ao esbarrar com a realidade oligárquica do Nordeste, encontrou na região um cenário de tensão.

Mas não só disso viveu a organização em sua rota por esse pedaço do Brasil. Quem conta essa história é a pesquisadora e professora Débora Franco Lerrer, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ), que recentemente lançou o livro “MST – como um movimento de gaúchos se enraizou no Nordeste”.

Em conversa com o Brasil de Fato, a autora resgata que o trajeto da organização pela região foi sedimentado a partir do trabalho de duas gerações de ativistas que saíram do Sul do país para tentar difundir as ideias da entidade em solo nordestino. É o que ela identifica como um “padrão de migração de militantes sulistas” que teria sido decisivo para que o movimento fincasse base na região e vivesse, a partir de então, a sua nacionalização.

Nesse sentido, o conteúdo do livro se comunica com a própria vida da autora, que, já na década de 1990, saiu do Sul para São Paulo e atuou como jornalista no Jornal Sem Terra, ligado ao MST. Lerrer se define como “ativista da reforma agrária”.

No que tange especificamente à presença da entidade no Nordeste, o livro menciona a chegada de uma primeira geração de militantes no intervalo entre 1985 e 1987. O grupo trazia migrantes vindos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

Já a segunda leva veio a partir de 1988 e 1989 e contou não apenas com o engajamento de sulistas, mas também de outros entusiastas da nacionalização do MST que vieram de estados como Espírito Santo, Sergipe, Paraíba e Bahia. O desbravamento do Nordeste pelo movimento foi conduzido por pessoas hegemonicamente de origem rural.

Sujeitos de conhecimento da modernidade

Ao abordar esse itinerário político, o livro escrito por Débora Lerrer tem o intuito de evocar e realçar aquilo que historicamente teria sido negado ao MST, um reconhecimento da sua “plena modernidade”.

Ela contrasta a forma de militância do movimento com a ação de agricultores gaúchos que se fixaram, por exemplo, no Centro-Oeste e no Oeste da Bahia para dar vazão à cultura da soja produzida pelo agronegócio.

Mais voltada à produção em larga escala e de exportação, a cartilha do grupo difere do modo popular de interagir com a terra, geralmente encarada como espaço de produção de alimentos e compartilhamento dos recursos naturais.

“É uma modernidade emancipadora, democratizante. Não é elitista. Essa modernização que esses caras [do agronegócio] fizeram no Oeste da Bahia é conservadora, e o MST é um movimento social que tem uma vocação modernizante no sentido emancipatório do termo”, diz Lerrer.

A autora explica que essa perspectiva do MST se liga à ideia de traçar um futuro, organizar rotas de atuação pensando no horizonte da luta popular: a conquista de direitos. “Uma mentalidade moderna e muito peculiar do Ocidente”, frisa ela, ao mencionar os aspectos que o movimento deixou evidentes em seu jeito de militar e de se enraizar pelo Nordeste e pelo Brasil.

Repressão

A nacionalização do MST rumo ao Nordeste teve como característica marcante o encontro com um conhecido personagem da região: a dura violência imposta aos camponeses que se insurgiam na luta por direitos e distribuição das terras, tradicionalmente hegemonizadas por grandes oligarquias rurais.

Debora Lerrer pontua que os migrantes sulistas se chocaram com a realidade dos jagunços, cuja presença marca a zona rural da região.

“No Rio Grande do Sul, por exemplo, havia uma tradição de presença estatal no processo de repressão. Não havia exatamente jagunços, pelo menos não na década de 1980. Então, esses militantes vieram de uma realidade em que o conflito era conduzido por um aparelho de Estado, pela polícia, mas não por jagunços, como ocorre no Nordeste”, compara a autora.

Outro destaque da jornada dos sem-terra em solo nordestino, conta o livro, se deu a partir de um rico intercâmbio político com forças populares já organizadas na região. O MST se vinculou a grupos como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), sindicatos, bem como ajudou a fundar outras organizações civis.

“Não foi difícil [o enraizamento] por isso. Eles não vieram impor um modus operandi. Eles vieram dialogar com esse modus operandi, e quem topou entrar no barco junto com eles entrou”, narra Lerrer.

Educação

Se a batalha pela garantia de direitos é constantemente oxigenada pela dinâmica da luta de classes, a profunda reforma agrária tão almejada pelo movimento também ainda não veio. Lerrer assinala, no entanto, que por onde passou o MST deixou sua marca. E uma de suas mais salientes características é o que a autora chama de “obsessão pela educação”.

“O que é isso? É modernidade plena, uma modernidade em que você dá capacidade pra pessoa poder escolher o que ela vai fazer lendo. Agora, se a pessoa não sabe ler, em uma sociedade modernizada como a nossa, ela fica de fora das coisas, não pode nem escolher. Foi assim que o movimento foi se expandindo”, expõe a professora e pesquisadora da UFRRJ.

Luta constante

O empenho e o entusiasmo do MST na busca por um engajamento coletivo em prol da reforma agrária renderam frutos no Nordeste. No livro de Lerrer, a autora destaca os números que nasceram desse processo.

Conforme foi conquistando novos seguidores no curso de sua rota, a organização alcançou a distribuição de mais de 9 milhões de hectares na região, segundo traz a obra da pesquisadora. O número equivale ao território de Portugal, exemplifica. Ela demarca que, no trajeto entre 1985 e 2006, por exemplo, mais de 300 mil famílias foram de alguma forma amparadas.

“E o MST, de certa forma, ajudou a mudar a realidade do Nordeste porque levou o seu modus operandi, mas o Nordeste também mudou o MST. É o resultado de toda uma jornada”.

Por Cristiane Sampaio, Brasil de Fato | Fortaleza (CE)

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