A velhice, um período que já é delicado, adquire elementos peculiares para a população LGBTI+. A saudade, o desejo de ter feito a vida diferente ou a solidão aparecem, mas é agravada por rompimentos familiares e pela falta de políticas públicas que respeitem e amparem lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e outras pessoas que fogem às sexualidades tradicionais.
O livro “O Brilho das Velhices”, lançado em 2021, traz uma série de entrevistas com pessoas idosas LGBTI+, que contam seu passado, seu presente e seus planos para o futuro. Um livro que buscou, na literatura, dar espaço às vozes dessa população em um tema ainda pouco discutido no mundo.
“Só o fato de chegar à velhice já é um brilho excepcional. Daí vem o ‘brilho’, do título do livro, como contraponto à questão do apagamento”, explica Luís Baron, um dos organizadores da obra, nesta entrevista ao Brasil de Fato MG.
O livro é uma produção coletiva da Universidade Federal de Goiás, da Universidade São Judas, de São Paulo, e da editora Associação Eternamente SOU, da qual Luís Baron é hoje presidente.
A Eternamente SOU, organização que existe há cinco anos, é voltada ao cuidado psicossocial das pessoas LGBTI+ com 50 anos ou mais. A entidade fornece atendimento psicológico, atenção, espaço de socialização, atendimento em saúde e departamento jurídico, além de apoios pontuais. Durante a pandemia, a Eternamente SOU realizou conversas online e cursos com 30 assuntos diferentes. Segundo Luís, foram mais de 900 horas no ar em um ano e oito meses.
A associação também realiza trabalhos de educação voltados para outros públicos, como o Seminário de Velhices LGBT, que já chegou à sua quinta edição, e pretende, em 2022, realizar o primeiro fórum mundial sobre o assunto.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato MG – Em que momento surgiu o nome “O Brilho das Velhices”?
Luís Baron – Veio exatamente do contraponto disso. Toda vez que a gente vai discutir o assunto sobre velhices, principalmente velhices LGBTI+, a primeira palavra que aparece é apagamento. É invisibilidade. A gente resolveu que não, que a gente vai falar sobre a existência brilhante que essas pessoas têm. Só o fato de chegar à velhice já é um brilho excepcional.
No processo de produção do livro, quais intersecções ou semelhanças vocês descobriram entre a velhice de pessoas LGBTI+ e a velhice de pessoas heterossexuais?
Claro que existem tangências entre as questões da velhice LGBTI+ e das velhices tradicionais, das pessoas cis e heterossexuais. Existem as questões de saúde, existe a percepção da velhice. Um livro da Simone de Beauvoir que chama “A Velhice” fala que a percepção da velhice vem de fora para dentro. Alguém reconhece você como pessoa velha, normalmente não é você mesmo. Isso torna as velhices semelhantes, mas acaba por aí. Não podemos comparar a velhice heterossexual com uma velhice LGBTI+.
Pessoas heterossexuais, em geral, constituíram família, criaram uma estrutura de apoio familiar e social que permite que ela tenha uma velhice, em geral, um pouco mais confortável e assistida. As pessoas LGBTI+ dessa geração, na sua maioria, saíram das suas residências, deixaram suas famílias para migrar para centros urbanos maiores, ter um pouco mais de liberdade e poder viver sua orientação e sua identidade de forma plena. Mas, fazendo isso, ela perde os vínculos familiares e uma rede de apoio importante que é a família.
Talvez ela ganhe outra família, mas nessa perda de vínculo, se constrói uma família com os amigos. Amigos que, provavelmente, também estão chegando na velhice e também estão fragilizados.
O processo de envelhecimento de pessoas trans tem elementos ainda mais específicos?
Se um homem gay, branco, cis era colocado à margem, imagina o que era uma pessoa trans? Tem até literatura sobre isso do grande João Nery, o primeiro homem trans a fazer uma cirurgia de redesignação sexual, uns livros muito bons. A velhice trans é muito mais específica. Por exemplo, uma idosa, segundo a Organização Mundial da Saúde, é uma pessoa de 60 anos. É um milagre uma pessoa trans chegar aos 60 anos.
Primeiro, porque a maioria das pessoas trans dessa geração que eu me encontro deixaram suas famílias – a maioria foi expulsa de casa, foi jogada na rua, se prostituiu, esteve num mundo muito mais marginal do que poderíamos imaginar. Quando ela chega à velhice, se ela vivia da prostituição, não consegue mais se prostituir. Se ela não conseguiu ter uma passabilidade, ou seja, se ela não conseguiu ficar parecida com uma mulher, ela também não conseguiu ganhar a vida por meio da prostituição. Os homens trans também tem muitas questões com relação a isso, a própria hormonização [uso de hormônios] e as questões de saúde levam para um outro viés de envelhecimento, totalmente diferente dentro dessas velhices.
A letra T da sigla LGBTI+ trata de identidade. E quando falamos de identidade, falamos de questões muito peculiares.
Muitas pessoas idosas LGBTI+ relatam solidão na velhice. Esse tema foi presente no depoimento dos entrevistados do livro? E em que medida ela tem relação com a invisibilidade?
A solidão na velhice é uma característica deste momento da vida. Há, sim, uma questão forte com a solidão na velhice LGBTI+, mas isso não implica no estereótipo que eu sempre ouvi de “ah, você vai ser uma pessoa sozinha na vida”. Não é por esse lado.
Há primeiro uma solidão existencial, que é a solidão da pessoa que vai envelhecendo e vai perdendo seus contemporâneos e isso não tem filho e não tem neto que dê jeito. Mas também há a necessidade de criar fortes vínculos de apoio, que a comunidade LGBTI+ não tem com essas velhices.
O tema da solidão foi presente nas entrevistas do livro, mas não foi absoluto. No livro, as pessoas falaram sobre suas existências passadas, presentes e futuras. Quando você fala do futuro, a questão da solidão aparece em alguns momentos, mas não é preponderante. Existe um estereótipo da pessoa velha sozinha. Sozinha é quem não consegue dar um novo significado para a sua existência com o mudar do tempo, a gente tem que evoluir junto com o tempo.
O que de mais impactante, ou surpreendente, vocês descobriram no processo de produção do livro?
Foi exatamente o fato de que somos todos muito humanos. A gente tem características muito próximas, LGBTI+, heterossexuais, a gente tem a questão da dor, da solidão, da saudade, o desejo de ter feito outras coisas, ou o desejo de fazer diferente. E isso é muito humano. Eu fiquei muito impressionado como uma trajetória de uma mulher trans tem tantas coisas em comum com a minha e tem muitas peculiaridades também. Mas essas tangências nos deixaram muito impressionados. Principalmente quando a gente começou a revisar as entrevistas, houve um impacto muito semelhante em todas as pessoas que organizaram o livro. Somos três organizadores.
Vocês têm consciência de que o livro pode ser uma espécie de registro histórico das pessoas idosas LGBTI+ de nosso tempo? Isso fez parte do objetivo de produzi-lo?
O objetivo do livro não era necessariamente esse, mas a ideia era dar espaço para aquelas vozes de pessoas LGBTI+ que não tem inserção na mídia e que, ao mesmo tempo, pudessem falar sobre suas existências de forma honesta, objetiva, protegida, por estar entre seus pares. O objetivo primordial era trazer um espaço para aquela voz. Não era “dar voz”. Voz essas pessoas têm, era abrir um espaço dentro da literatura para que a pessoa colocasse a sua voz para ser ouvida.
E, pelos depoimentos, que tipo de políticas públicas vocês conseguiram identificar como as mais necessárias aos idosos LGBTI+ no momento?
Quando a gente fala de políticas públicas para as velhices LGBTI+, a gente fala das políticas públicas para as velhices em geral e para as velhices LGBTI+ em especial. Ou seja, aproveitar as políticas públicas que já existem e incrementá-las com as necessidades muito especiais que tem a comunidade LGBTI+ envelhecente ou velha.
Há uma demanda muito forte de ter um local de acolhimento para aquela velhice que precisa de cuidados e precisa de um ambiente que acolha a integralidade daquele ser, com a orientação que ela tiver, do jeito que ela quiser, respeitando a sua identidade. Parece uma redundância falar disso em um país onde existem poucas instituições de longa permanência, mas é necessário para nossa comunidade. Acho que a gente tem uma obrigação histórica com essa população. Temos que providenciar locais onde essas pessoas se sintam acolhidas, cuidadas, protegidas, onde elas possam continuar contando e produzindo história para a comunidade LGBTI+.
Fora isso, precisamos de políticas na comunidade como um todo. Hoje em dia, o casamento igualitário e a adoção de filhos não foram criadas por uma lei, mas por uma jurisprudência. Nem lei para isso nós temos. Quando a gente fala em políticas públicas, tem que avançar e muito na questão LGBTI+, avançar e muito na questão da velhice.
O próprio Estatuto do Idoso não fala sobre sexualidade. Ou seja, não leva em consideração as questões de gênero, de identidade, de orientação. Pronto, então todo velho é igual, não transa, não faz sexo? Sexualidade não é só sexo, é levar em consideração as diversas orientações e identidades dessa população. Se o Estatuto do Idoso, que é considerado um documento razoável pelas entidades, não tem isso, imagina as políticas públicas.
Mas nós começamos uma construção. Nós tivemos, no ano passado, uma audiência na Câmara Federal. Vamos atrás de produzir políticas públicas adequadas para a população LGBTI+ velha e envelhecendo.
Fonte: Brasil de Fato (MG), por Rafaella Dotta