Os equipamentos da rede de assistência social e saúde, as prisões e os manicômios judiciários têm semelhanças entre si, uma vez que representam espaços de circulação e de controle da população em situação de vulnerabilidade, em sua maioria negra, pobre e periférica. A análise é do sociólogo Fábio Mallart, no livro Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo.
Mestre em Antropologia Social e Doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), Mallart traça um itinerário de aparatos estatais, em que cada um conduzia a outro. “Quando eu cheguei às prisões eu me espantei com o número de presos e de presas que já haviam sido internados na adolescência, mas também com um fluxo considerável de internos que, durante o cumprimento das penas, eram transferidos para os manicômios judiciários”, afirma.
A circulação de determinadas populações por uma multiplicidade de equipamentos do Estado e o confinamento dessas pessoas nesses espaços são os pontos centrais do livro. “Tem uma grande questão de um jogo entre circulação e confinamento de determinadas populações que ficam a vida inteira transitando por esses aparatos.”
Mallart atualmente é pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/bolsista PNPD-Capes) e também autor do livro Cadeias dominadas: a Fundação CASA, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos, publicado em 2014.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: O livro surgiu da sua tese de doutorado. Como foi o processo de construção e a metodologia?
Fábio Mallart: O livro é o resultado de um itinerário de um movimento, onde cada um desses espaços que eu visitava me lembrava um espaço anterior ou me conduzia a novos espaços.
Quando eu cheguei às prisões, eu me espantei com o número de presos e de presas que já haviam sido internados na adolescência, mas também com um fluxo considerável de internos que, durante o cumprimento das penas, eram transferidos para os manicômios judiciários.
Quando eu cheguei nos manicômios, eu me deparei com muitas pessoas que tinham deixado as prisões ou que tinham passado pelas prisões, mas também com muita gente que vinha da Cracolândia.
Durante o trabalho de campo na Cracolândia, eu encontrava com muitos homens e mulheres que vinham das prisões e dos manicômios, mas que também tinham passado por uma série de outros equipamentos de saúde e assistência social.
Portanto, um ponto central do livro é essa circulação de determinadas populações negras, pobres e residentes de zonas periféricas por uma multiplicidade de aparatos estatais, sejam eles destinados à punição e a repressão, sejam eles destinados à saúde e à assistência social. Tem uma grande questão de um jogo entre circulação e confinamento de determinadas populações que ficam a vida inteira transitando por esses aparatos.
Então essas populações são geralmente formadas por pessoas negras, pobres e periféricas?
Essa é uma questão bastante estruturante. Sobretudo populações negras, pobres e residentes de zonas periféricas são capturadas por essa espécie de malha carcerária assistencial e que ficam nesse circuito a vida toda. Daí a expressão “findas linhas” no título: tem a ver de fato com determinadas existências que desembocam nos fins de linha, como os manicômios judiciários.
Uma dessas trajetórias é a da Sueli Aparecida Alves. É toda uma existência forjada por essa circulação nesses múltiplos aparatos, sejam eles punitivos repressivos ou assistenciais e de saúde, até que por fim ela desemboca no manicômio judiciário e fica ali durante anos e anos confinada até que vem a óbito. A expressão “findas linhas” está correlacionada com vidas que são de fato aniquiladas nessa própria circulação dentro do que eu chamo de arquipélago.
Não se trata só de confinar, mas também de fazer circular. Fazer com que essas populações também circulem por uma miríade de aparatos institucionais. Certamente existem aqueles que vão ser confinados durante o maior tempo possível em determinados aparatos, mas existem aqueles que vão ser postos para circular entre esses aparatos.
O senhor fala sobre o processo de dupla expansão, ou seja, do aumento da malha punitiva paralelo ao crescimento da malha assistencial. Como esses dois eventos estão relacionados?
Nos Estados Unidos, segundo os trabalhos de Loïc Wacquant, tem uma explosão da população carcerária e das políticas penitenciárias em paralelo à redução das políticas sociais. É o que a gente pode chamar de paradigma da expansão e redução, ou seja, expande a malha punitiva e reduz todo o aparato social.
No cenário brasileiro, sobretudo a partir da virada dos anos 2000, a gente tem o que eu chamei de uma “dupla expansão”. Tem uma expansão brutal da malha punitiva em paralelo à expansão também dos equipamentos de saúde, de assistência social. Isso significa que é possível expandir as duas coisas ao mesmo tempo, o penal e o social. Os dois vetores correm paralelamente. Além disso, vale dizer que expandir os equipamentos e políticas assistenciais não significa, necessariamente, consolidar direitos.
Tem uma discussão de como esses aparatos da assistência social e da saúde também operam numa chave de controle. Não dá para dizer que esses equipamentos só fazem isso. O que eu estou falando é que tem uma dinâmica também de controle das populações pobres que passa pela chave da assistência e da saúde.
O senhor falou que tem um padrão de determinadas populações que circulam e são confinadas nesses espaços. Mas existe um padrão de ferramentas que o Estado aplica para manter essas malhas?
O que notei foi uma circulação de um conjunto de práticas, enunciados, tecnologias, códigos, cheiros, procedimentos, políticas estatais e políticas criminais que iam se repondo de maneira diferencial nesses lugares. É possível constatar dinâmicas das periferias nas prisões, mas também das prisões nas periferias. Muitas conexões e práticas arquitetônicas e simbólicas entre as prisões e os manicômios. Códigos, discursos e repertórios das prisões que circulavam pelos centros de internação para adolescentes, mas também por equipamentos de saúde e de assistência social.
Por exemplo, no sistema prisional adulto existe o Grupo de Intervenções Rápidas (GIR), sob o qual pesam inúmeras denúncias de torturas e maus tratos contra os presos. O GIR não deixa de ressoar o tempo inteiro, no aparato policial militarizado, que opera nas periferias da cidade. No entanto, nas unidades de internação na Fundação CASA, onde o GIR atuava por vezes, existe uma força específica que era chamada pelos adolescentes de “choquinho”, que é evidentemente uma alusão à tropa de choque da Polícia Militar.
Outro exemplo. Nos centros de atenção psicossocial, determinadas categorias circulavam e remetiam a espaços punitivos: “viatura” para chamar o carro que servia os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e “triagem”, que é um termo evidentemente muito relacionado quando se entra na prisão. Esses repertórios se atualizam de maneira diferencial nesses lugares e nesses territórios urbanos.
Outro ponto que me chamou atenção foi o uso de remédios para concretizar algum tipo de controle sobre essas populações nesses espaços. Também é uma ferramenta que se repete?
Esses psicofármacos são muito funcionais em determinados sentidos dentro das prisões. Primeiro que eles operam como tecnologia de gestão de população e de espaços superlotados. Eu encontrava muitos e muitos presos e presas que tomavam psicofármacos por conta dos próprios efeitos desencadeados pelo cárcere. Por exemplo, em celas com 70 pessoas, obviamente existe uma dificuldade de dormir. Por isso, muitos mencionavam o uso de ansiolíticos exatamente para fazer um pouco essa gestão do sono.
Mas também é possível notar como os remédios operavam também como instrumentos de tortura, em determinados momentos. Aqui estou me referindo sobretudo a antipsicóticos injetáveis, como o Haldol, que, nas palavras de presos e presas, era uma substância utilizada para “quebrar” e “entortar”, o que é bastante elucidativo de como esses medicamentos também podem operar como instrumentos de tortura.
É óbvio que esses medicamentos estão disseminados por todo o tecido social. Não é uma questão exclusivamente relacionada às prisões. Mas a questão, do ponto de vista do livro, era tentar pensar a funcionalidade estratégica dessas substâncias dentro de prisões superlotadas. E aí a ideia de uma gestão neuroquímica das prisões.
Por fim, no primeiro capítulo, o senhor fala sobre o livro ser fruto não somente de uma pesquisa, mas inclusive de atuação nesses espaços. Qual foi a sua trajetória?
A minha inserção nesses espaços institucionais nunca se deu só como pesquisador. Eu também atuava como professor nas unidades da Fundação CASA, além de ministrar alguns cursos para as populações confinadas, quando eu era agente da Pastoral Carcerária. Nunca se tratou, portanto, só de fazer pesquisa. Mas, simultaneamente, de atuar e pesquisar nessas arenas políticas sensíveis.
Entre 2004 e 2009, eu transitei por uma série de unidades de internação da Fundação Casa, atuando como educador, mais especificamente ministrando cursos de fotografia e de produção de textos para os adolescentes que se encontravam em medidas socioeducativas de internação.
Já em 2010, eu participei de uma pesquisa de campo, pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, numa favela da zona sul da capital paulista. Naquele momento o que interessava era um pouco não só a compreensão acerca da dinâmica do comércio de drogas, mas também as conexões entre periferias, prisões e espaços de internação para adolescentes.
A partir de 2012, dei início a uma série de visitas às prisões de São Paulo, tanto da capital quanto do interior, enquanto agente da Pastoral Carcerária. Mas a partir de 2015, eu comecei também a fazer visitas nos três manicômios judiciários existentes em São Paulo, dois deles localizados no município de Franco da Rocha e um deles em Taubaté.
Ao mesmo tempo que eu entrava nas prisões e nos manicômios, também fui progressivamente fazer um trabalho de campo na região conhecida como Cracolândia. Nesse mesmo período, também tive oportunidade de fazer algumas visitas esporádicas a equipamentos da rede de assistência social e saúde.
Portanto, muitos dos problemas e questões de pesquisa que compõem o livro foram construídos e aprimorados no decorrer de um processo, e não de um projeto pré-concebido.
Por Caroline Oliveira/Brasil de Fato