Feminismo no Brasil - Memórias de quem fez acontecer, livro recém-lançado pela socióloga Jacqueline Pitanguy e pela historiadora Branca Moreira Alves, joga luz sobre um período chave para o movimento, entre os anos de 1960 e de 1990. O foco da narrativa é a segunda onda do feminismo, quando a luta por igualdade de gênero obteve conquistas históricas nas ruas, nas leis e nos tribunais.
Uma experiência que, na opinião das autoras, deveria servir de exemplo para o momento político do país. Durante entrevista à DW Brasil, as duas traçaram um paralelo entre o trabalho feito para vencer disputas por espaço na Constituição de 1988 e a mobilização desejada por elas para o pleito de outubro.
"Durante o processo da Constituinte, entendemos que aquele era um momento histórico. Agora, há um outro bonde da história passando. É fundamental construir entre nossas diferenças para buscar o que nos une: a defesa profunda da democracia e das instituições democráticas", afirma Pitanguy, autora também com Branca do livro O que é feminismo, lançado em 1981.
A mudança na composição do movimento social ocorrida neste século com múltiplas identidades de gênero, raciais e étnicas lutando por direitos específicos não é, na visão das pesquisadoras, impedimento para seguir uma estratégia similar à adotada no período da redemocratização do país. Durante a Constituinte, afirmam elas, mulheres negras, rurais, empregadas domésticas, acadêmicas, parlamentares e sindicalistas se organizaram por objetivos comuns no que ficou conhecido como "Lobby do Batom".
A diversidade nos anos de 1980 se reflete nas muitas personagens que dão vozes às narrativas. Moreira Alves e Pitanguy ouviram 40 mulheres de origem social, cor de pele e profissões distintas. Entre elas estão a pedagoga e filha de lavradores Schuma Schumaher, a filósofa Sueli Carneiro, a jornalista Rosiska Darcy de Oliveira, as ex-deputadas constituintes Anna Maria Rattes e Benedita da Silva, a jornalista e sindicalista Dinorah Maria do Carmo e a diretora de teatro Maria Lúcia Vidal.
No livro, as biografias das 42 militantes se cruzam para remontar, em uma perspectiva particular do Rio de Janeiro, fatos da segunda onda feminista. São memórias de um movimento que, segundo elas, "culminou com a inscrição da igualdade entre homens e mulheres na Constituição de 1988".
Nessa reconstrução histórica, as trajetórias das autoras tiveram passagens marcantes. Na década de 1970, elas organizaram o Ceres, um grupo de reflexões sobre feminismo, e foram protagonistas no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985. Pitanguy e Moreira Alves ocuparam a presidência do CNDM e ,desde 1990, atuam na ONG Cepia, organização de defesa do direito das mulheres com sede no Rio de Janeiro. A seguir os principais trechos da entrevista das autoras à DW Brasil.
DW Brasil: Feminismo no Brasil é uma continuação de O que é feminismo?
Jacqueline Pitanguy: De certa forma sim. Publicamos O que é feminismo em 1981, dentro da coleção Primeiros Passos, da [editora] Brasiliense. O livro, inicialmente, traz um histórico de como o patriarcado atuava, oprimindo e subjugando as mulheres. Chegávamos até o início do movimento feminista e parávamos ali. Uma série de eventos que vão caracterizar o movimento feminista pós anos 1970 não estava lá . Volta e meia a gente dizia: 'precisamos atualizar'. Vinham outros projetos e esse tempo nunca chegava.
E o tempo veio com a pandemia de covid-19?
Pitanguy: Esse livro tem muito a ver com a covid. A pandemia nos devolveu o espaço de casa. Branca mora em um sítio perto de Barbacena e eu, no Rio. Nunca nos encontramos pessoalmente para fazer esse livro. No entanto, era como se estivéssemos sentadas lado a lado. A tecnologia nos aproximou.
Comparando as duas obras, Feminismo no Brasil está ancorado na política…
Pitanguy: Tem uma cronologia política: a década de 60, o início da ditadura, os anos de chumbo, a volta dos exilados, o processo de democratização. Acompanha a institucionalização do feminino através da criação de conselhos estaduais e, depois, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que vai lançar uma campanha histórica: "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher". Uma articulação que ficou conhecida como Lobby do Batom.
Branca Moreira Alves: A história mais política do feminismo começa na luta pelo sufrágio. Luta que se inicia no século 19 nos EUA e na Inglaterra e dura 70 anos. São três gerações de mulheres tentando conseguir esse direito básico que parece muito simples. Nesse sentido, o foco do livro é o feminismo da chamada segunda onda. O pontapé inicial foi dado em 1975 no Rio de Janeiro com os grupos de reflexões, dos quais eu, Jacqueline e Leila [a advogada Leila Linhares Barsted] participamos.
O livro é a história política do feminismo contada por 42 vozes?
Pitanguy: Sim. Ao longo de todo esse período, ouvimos 40 mulheres protagonistas, que participaram e foram construindo esse movimento. Na década de 1970, é um movimento feminista das ruas, das praças e de grupos de reflexão na luta contra a violência à mulher. Na década seguinte, continua presente nas ruas, nas praças, nos sindicatos e vai assumindo espaços de poder a nível estadual e federal, no Conselho Nacional do Direito das Mulheres.
O livro também mostra como o patriarcado foi construído.
Moreira Alves: Sim. Porque o feminismo do século 20 não surgiu do nada. Surgiu de toda uma história de repressão, uma história em que a mulher é silenciada. A gente fala, por exemplo, da perseguição às bruxas, que é muito impactante. De cada dez mortes por acusação de bruxaria, nove eram de mulheres. Um verdadeiro genocídio de mulheres.
Hoje, o feminismo é atravessado por outros movimentos, de transexuais, de mulheres negras. Como articular a pauta feminista com as identidades de gênero, de etnia…?
Pitanguy: São duas percepções: uma como estratégia política e outra como construção de identidade. Com relação à questão da identidade ou de uma política mais identitária, a grande transformação ocorreu no século 21. Nos anos 2000, ela [a questão identitária] vai se tornar uma questão política central percebida por grande parte da sociedade.
No prefácio, nós colocamos uma frase muito importante de que temos plena consciência de que raça, etnia, orientação sexual e pobreza são marcadores claríssimos de desigualdade. Marcadores de acesso ao usufruto dos direitos humanos. Isso [a diversidade] não impediu naquelas décadas que se construíssem grandes alianças. E aí entra a questão da estratégia política.
Como assim?
Pitanguy: Há certos momentos que você precisa construir aliança em torno de pontos consensuais. E isso foi feito. E foi por isso que nós nas nossas diversidades, de mulheres rurais, negras, empregadas domésticas, profissionais [liberais] , acadêmicas, classe média e sindicalistas, conseguimos organizar o Lobby do Batom.
Tínhamos no CNDM, a comissão das mulheres negras, com um trabalho extraordinário de lideranças, como Sueli Carneiro, que viriam a criar a Geledés, a primeira organização de mulheres negras do Brasil. Trabalhamos com grandes lideranças de mulheres rurais e das empregadas domésticas, como Nair Jane. Mas a força desses movimentos não era igual ao que existe hoje.
Como vocês veem hoje a estratégia de construção de alianças entre as lideranças dos movimentos sociais?
Pitanguy: Durante o processo da Constituinte, nós entendemos que aquele era o momento histórico. O bonde da história estava passando e a gente tinha que tomá-lo porque aquele momento não iria se repetir. Eu acredito que agora, com as próximas eleições, há um outro bonde da história passando.
É fundamental construir pontes entre nossas diferenças para buscar o que nos une: a defesa profunda da democracia, das instituições democráticas e o repudio à tortura, ao autoritarismo, ao racismo, ao machismo violento das armas de fogo, das palavras desabonadoras às mulheres. Acredito na construção de alianças a partir de nossas diferenças, pensando estrategicamente para o momento político que o país vive.
Moreira Alves: A gente viveu isso durante a década de 1970 diante de uma ditadura efetiva que torturava, que matava, que censurava. E o movimento nascente naquele momento foi capaz de tecer essa aliança contra o inimigo comum que era a ditadura. A Igreja de esquerda, por exemplo, foi fundamental no repúdio à ditadura e na proteção de preso político, ajudando pessoas perseguidas a sair do país e a financiar sua vida no exílio. Padres e freiras foram presos, torturados e mortos. Mas a Igreja já tinha conosco aquele ponto cego mantido até hoje, que é o direito reprodutivo da mulher.
Como o tema do aborto foi tratado durante a Constituinte?
Pitanguy: Quando pensamos na agenda dos direitos reprodutivos, a barra pesa muito. Temos aí o dogma, o sagrado e a religião entrando em campo. E entra como a palavra de Deus. Na Constituinte, tínhamos o Lobby do Batom com uma equipe pequena de 25 parlamentares extremamente aguerridas; um grupo majoritário que não queria nem falar a palavra aborto; um grupo ideológico maior favorável à proteção da vida desde a concepção; e um grupo ideológico muito pequenino favorável ao abortamento.
Teceremos uma estratégia de colocar que o aborto não era matéria constitucional, ou seja, o caminho do meio. Desenvolveu-se uma campanha e o movimento feminista do Brasil conseguiu assinaturas para uma emenda popular de descriminação do abortamento. Tínhamos por um lado a descriminação e por outro a proibição total. O caminho do meio foi o vitorioso: aborto não era matéria constitucional. Foi a única forma de resguardar o que já tinha, o abortamento legal em caso de estupro e risco de vida e também de permitir os avanços como o que acontece em 2012 (com o aborto) por anencefalia (fetal).
Da Constituinte para os dias de hoje, piorou?
Pitanguy: Com a eleição do atual presidente e o atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, isso [a religiosidade na política] está muito agudo. De um lado, você tem os paladinos da civilização ocidental, da defesa do cristianismo e dos valores da família e da luta contra o comunismo. Do outro lado, você tem os outros e as outras, amaldiçoados porque estamos pregando o fim da família. Isso não é mais política. O campo político contém o contraditório, o debate republicano. Pessoas crentes e religiosas estão sendo conduzidas a tomar posição que não tem nada a ver com uma religião do amor e da paz. É um caminho muito difícil, muito duro e desigual.
A pauta da violência contra as mulheres avançou, no entanto, o feminicídio no Brasil continua sendo um grande problema com cerca de 1.300 casos em 2021, segundo dados preliminares do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Moreira Alves: Antes [esse número] não aparecia. O fato de hoje aparecer é positivo. Na década de 1970, na segunda onda do feminismo, a violência sai do domínio privado e vai para o público. No segundo julgamento de Doca Street (quando o empresário é condenado por ter matado a ex-companheira, a socialite Ângela Diniz), as feministas de todo estado do Rio de Janeiro vão para frente do fórum e a gente faz o primeiro movimento público. Põem a cara a tapa. Mas as mulheres sempre foram mortas através dos séculos pelos seus maridos, companheiros etc.
Há como comparar o Lobby do Batom com a atual composição da bancada feminina no Congresso?
Pitanguy: O que aconteceu na Constituinte foi um fenômeno que não se repetiu. Houve um aumento significativo [de parlamentares mulheres], passamos de nove para 26 mulheres eleitas (o número caiu para 25 após Bete Mendes deixar o cargo de deputada para ser secretária de cultura em São Paulo), ainda assim baixíssimo num total de mais de 500 homens congressistas .
Entretanto, essas mulheres de backgrounds diferentes, de estados diferentes, que chegam com posições político-ideológicas e, sobretudo, com filiações partidárias diferentes, se unem em uma bancada feminina.
Não vejo isso acontecendo agora. Há poucos esforços de diálogo. Temos parlamentares que individualmente são totalmente comprometidas com a agenda das mulheres, mas não diria que exista uma bancada feminina atuando. Mesmo porque entre as parlamentares temos aquelas que são totalmente defensoras da pauta bolsonarista e da evangélica.
Moreira Alves: Naquele momento histórico, estávamos saindo da ditadura. Todos os grupos sociais estavam visando a Constituinte como uma porta de entrada para um novo Brasil para uma nova democracia. A gente agora está em um país que retrocedeu, num país com muito ódio e incompreensão. Não há diálogo. Um momento muito triste, que não há possibilidade de um olhar mais unificado e respeitoso para mudança social.
Fonte: Brasil de Fato, por Luciano Dias DW