Há quase 100 anos, em 1922, o direito das mulheres ao voto e à política provocava um acalorado debate no seio da sociedade brasileira. Entre as mulheres, surgiam lideranças mobilizadas pelas campanhas de direito ao trabalho e em condições dignas, à educação e ao sufrágio. O sufragismo se consolidava associado às lutas das mulheres de outras partes do mundo, as sufragistas, que haviam iniciado sua atuação meio século antes, especialmente na Europa e nos EUA. Mas quem foram as sufragistas brasileiras e como ocorreu a conquista pelo sufrágio em nosso país?
São essas as histórias contadas na coletânea “Cem anos da luta das mulheres pelo voto na Argentina, Brasil e Uruguai”, organizado pela cientista política Ana Prestes e publicado pelo selo editorial do Instituto “E Se Fosse Você?” . Com prefácio de Dilma Rousseff e da professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Flávia Biroli, o livro reúne textos de trezes autoras, entre acadêmicas, intelectuais e ativistas políticas, que se dedicam a relatar e analisar, com profundidade e sem abdicar do senso crítico sobre o movimento, o processo de conquista do sufrágio feminino nos três países.
A obra também presta uma homenagem às mulheres que nos trouxeram até aqui e foram precursoras na conquista pelo sufrágio universal.
“Elas simplesmente não foram consideradas ao se contar a história do nosso país”, expõe a organizadora e cientista política Ana Prestes.
Para ela, lembrar o centenário é contar esta história, com toda sua força e inevitáveis contradições, e ainda prestar um tributo a lideranças como Bertha Lutz, Leolinda Daltro, Mietta Santiago, Alzira Soriano, Celina Guimarães, Almerinda Gama, precursoras e protagonistas desta frente de lutas. Assim como às primeiras parlamentares, como Antonieta de Barros, de Santa Catarina, e Carlota Pereira, de São Paulo.
A organizadora relata que tem acompanhado a evolução das mulheres na política brasileira nos últimos anos e fica chocada, não só com os números da baixa representatividade feminina, mas também com os sucessivos eventos de violência política de gênero que aumentam na medida em que mais mulheres entram para o universo da política institucional.
“Ao vivermos essa realidade, me passou pela cabeça que, há 100 anos, outras mulheres, em condições ainda mais adversas, enfrentaram batalhas importantes para que fossemos reconhecidas como vozes ativas e construtivas da política”, lembra Ana.
Em 1922, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, do centenário da independência e outros eventos marcantes para a época, foi organizada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, por Bertha Lutz e outras ativistas, como Almerinda Gama. “A luta delas foi marcada também pelas contradições da época e que perduram até hoje, como a exclusão ainda maior da política de mulheres negras, indígenas e trabalhadoras em geral”, explica a organizadora do livro.
Além da história brasileira, a obra também traz o contexto argentino e uruguaio. “Apesar da proximidade desses três países no contexto regional, tivemos experiências distintas de colonização, processo de independência e constituição de sistemas políticos e partidários. Mas em todos os contextos nacionais sobressai a dificuldade das mulheres para furarem os bloqueios e barreiras à sua inserção na política, como se esse espaço fosse exclusivo dos homens. Assim como as dificuldades pelas conquistas específicas com relação à educação, trabalho, proteção da maternidade e da infância, saúde sexual e reprodutiva”, explica Ana.
A cientista política aponta que quem ler o livro vai perceber que temos uma trajetória semelhante entre Uruguai e Brasil, já a experiência argentina é distinta. No Brasil a conquista do voto para as mulheres veio em 1932, mesmo ano que foi regulamentado no Uruguai, e na Argentina somente em 1947. “Foi um ponto importante do livro trazer as abordagens de colegas pesquisadoras do Uruguai e da Argentina que vem se destacando no tratamento desse tema em seus próprios ambientes acadêmicos, políticos e da sociedade civil”, descreve a organizadora.
Quem conta a história?
Ana Prestes explica que hoje ocorre um movimento dentro da própria disciplina acadêmica de história que é o de recontar o desenvolvimento histórico das sociedades considerando os pontos de vista de sujeitos que não eram considerados, como as mulheres, negros, indígenas e trabalhadores. “Isso ocorre porque nossa sociedade brasileira, por exemplo, foi fundada sobre o tripé do patriarcado, da escravidão e da grande concentração da terra. Os sujeitos legítimos para contar a história eram invariavelmente homens, brancos e abastados. Quem podia ir estudar direito em Coimbra? Homens. Quem podia ler e escrever jornais? Homens. Quem podia votar e ser eleito? Homens”, ilustra.
A cientista política explica que o caso das mulheres é ainda pior porque também enfrentam a invisibilização e o calar de vozes dentro dos próprios movimentos sociais. “Muitas vezes, mesmo estando do lado oprimido da história, precisamos lutar com nossos pares por reconhecimento de nossa voz para fazer propostas, traçar estratégias, desenvolver políticas em geral e participar em pé de igualdade”, expressa.
Para a organizadora, olhar para a história é importante para compreendermos em que momento nos encontramos e que não estamos sozinhas.
“Somos fruto de movimentos que vieram antes de nós”, defende Ana.
Com o objetivo de contar os movimentos sufragistas no Brasil, Argentina e Uruguai por diversos ângulos e abordagens, Ana convidou as principais pesquisadoras e investigadoras da área, mas também mulheres que estão na prática política cotidiana com atuação no parlamento.
“Felizmente muitas aceitaram e conformamos esse grupo de 13 autoras que assinam os capítulos do livro, além da presidenta Dilma que nos brindou com um prefácio, o que é muito significativo por ter sido a única mulher até hoje a sentar na cadeira da presidência da República”, relata.
Além da cientista política Ana Prestes, contribuem com a obra Adriana Valobra, Cibele Tenório, Clara Araújo, Elizabete Maria Espíndola, Ineildes Calheiro, Maria Laura Vazquez, Maria Lygia de Moraes, Mariana de Rossi Venturini, Marlise Matos, Mônica Karawejczyk, Olívia Santana e Teresa Cristina Marques.
100 anos depois
Em 2022 serão completados 90 anos da conquista do voto feminino no Brasil, em 1932. A coletânea organizada por Ana Prestes celebra os 100 anos do auge das lutas pelo sufrágio e a inserção na política formal no país, que ocorreu em 1922. Apesar de um centenário de diferença entre esse momento de lutas e a atualidade, Ana avalia que a participação feminina na política brasileira está longe da ideal.
“Ainda estamos deslocadas da política e somos vítimas sistemáticas da violência política de gênero”, aponta Ana Prestes.
A cientista política exemplifica o déficit democrático em questão de gênero no Brasil por meio das eleições municipais de 2020, quando apenas 12% do total de prefeitas e prefeitos eleitas são mulheres e apenas 16% do conjunto de vereadoras e vereadores eleitas são mulheres.
No Mapa Global de Mulheres na Política de 2021 (estudo publicado anualmente pela ONU Mulheres e a UIP – União Interparlamentar) o Brasil aparece na posição 144 no quesito mulheres ocupando cargos em ministérios e na 142 no quesito mulheres no parlamento, isso entre 190 países analisados. Esse mesmo estudo aponta que a média de mulheres ocupando lugar no parlamento nas Américas é de 32%, enquanto que no Brasil é de 15%. “Portanto, temos ainda um longo caminho a percorrer para ocupar esse espaço que ainda é tão hostil à presença das mulheres que é a política”, completa Ana.
Ana Prestes
Socióloga, mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, Ana Prestes é analista internacional. Autora dos livros infantis Mirela e o Dia Internacional da Mulher e Minha Valenta Avó, em que narra a história de Maria Prestes, além de organizar os livros Teorias das relações internacionais – Contribuições marxistas, e Cem Anos de Luta das Mulheres Pelo Voto. Pesquisadora da história das mulheres brasileiras na política, Ana Prestes escreve para o Portal Vermelho e o Opera Mundi, tem um programa às terças-feiras na TV Grabois e outro de análise internacional às sextas-feiras na TV Vermelho.
Sobre o Instituto E Se Fosse Você?
O Instituto E Se Fosse Você é uma ONG fundada pela ex-deputada Manuela d’Ávila após as eleições de 2018, que foram fortemente marcadas pelo uso da desinformação, com o intuito de combater as redes de ódio e fake news e de incentivar a empatia. Atualmente, a organização atua para promover a dignidade menstrual, transformando o lucro da venda dos livros em absorventes que são doados a pessoas que menstruam em situação de vulnerabilidade, e amplificar o debate sobre gênero e desinformação. O selo editorial do Instituto já publicou os livros Revolução Laura edição Popular, E Se Fosse Você?, e as coletâneas Sempre Foi Sobre Nós e Rede de mentiras e de ódio.
Serviço
Título: Cem anos da luta das mulheres pelo voto na Argentina, Brasil e Uruguai
Editora: Instituto E Se Fosse Você?
Tamanho: 356 páginas
Valor: R$ 52,90
Disponível em www.esefossevoce.com.br
Fonte: Portal Catarinas, por Daniela Valenga