A 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo expediu na última sexta-feira (24) liminar que pode proibir a Polícia Militar de utilizar armas de fogo e balas de borracha durante manifestações. A partir da publicação do despacho, a PM terá 30 dias para elaborar e divulgar um plano de ação para protestos de rua que não preveja o uso desse tipo de equipamento, sob o risco de multa diária de R$ 100 mil. A decisão de primeira instância tem caráter provisório. Cabe recurso por parte do governo estadual.
“Queríamos que a Justiça proibisse armas de fogo e balas de borracha em protestos populares, mas, na decisão, o juiz acolheu parcialmente nosso pedido, ordenando que a PM faça um plano de ação em que conste a proibição desses artefatos”, esclarece o defensor público Rafael Lessa, membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, órgão que moveu a ação. “A decisão em si não proíbe o uso de balas de borracha. Ela diz que o plano deverá prever a proibição.”
No despacho, porém, o juiz Valentino Aparecido de Andrade é enfático ao condenar o emprego da munição, também conhecida como elastômero. “O uso de armas de fogo pelos policiais ou munição de elastômetro dá ensejo a que policiais menos preparados possam agir com demasiada violência. Além disso, o simples uso dessas armas causa intimidação às pessoas que queiram se reunir”, escreveu. “O uso dessas armas de fogo, ou mesmo com munição de elastômero, não pode se admitir, portanto.”
O magistrado recorda que a tropa paulista tem agido com “truculência” contra manifestantes, e aponta que essa truculência tem afastado os cidadãos das ruas – inclusive durante a Copa do Mundo. “Foi a presença ostensiva da PM em inúmeros lugares, com armas visíveis e em clara posição intimidativa, o que fez com que tais protestos desaparecessem.” Para evitar os episódios de violência policial, Andrade também exige que soldados se apresentem devidamente identificados com seu nome – o que não tem ocorrido. “O cidadão tem direito de saber o nome do agente policial, assim como de qualquer agente público com quem esteja a lidar.”
O juiz permitiu, porém, que o plano de ação da PM preveja o emprego de outros artefatos menos letais, como spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. “Mas em casos extremos”, ressalvou. Andrade também autorizou que a PM continue usando equipamento de vídeo para filmar manifestações. “Trata-se de um meio que poderá permitir uma melhor análise das ocorrências de um evento, inclusive em proteção àqueles que tenham sido agredidos por policiais”, anotou. “A Polícia Militar deve armazenar o conteúdo integral dessas imagens, pois poderá ser judicialmente obrigada a exibi-lo, se o caso.”
Contra-corrente
A decisão contraria recentes declarações do governador Geraldo Alckmin (PSDB), do secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, e do comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, Benedito Meira, que insistem na necessidade de que as manifestações sejam previamente comunicadas às autoridades. “O direito de reunião não é condicionado a um aviso prévio nem a qualquer outra condição, salvo a que se refere à mantença da ordem pública”, escreveu Andrade, reafirmando que não se pode “impor condições de tempo e lugar” ao direito de reunião. “O interesse do Estado não é impedir a reunião, mas mantê-la em funcionamento.”
Outra apreciação do magistrado que diverge das repetidas declarações dos governantes paulistas vai no sentido de reconhecer o despreparo da Polícia Militar para lidar com protestos que inundaram as ruas de São Paulo a partir de junho de 2013. “Era mesmo de se esperar que a PM não soubesse agir diante dessas reuniões populares, porque o fenômeno sócio-jurídico era novo entre nós”, considera. “O que se viu, em 2013, foi uma absoluta e total falta de preparo.” Segundo o juiz, a polícia não soube agir. “No início, uma inércia total, omitindo-se no controle da situação, e depois agindo com demasiado grau de violência.”
Além de absorver todas essas orientações, Andrade determinou que o novo plano de ação da PM se paute pelo equilíbrio entre o direito de manifestação e a manutenção da ordem. O juiz lembra que a corporação tem desenvolvido métodos eficazes de controle de distúrbio em estádios de futebol, sem a necessidade de empregar armas de fogo e balas de borracha – o que, segundo ele, demonstra ser “plenamente possível” garantir a ordem pública em protestos populares sem o uso de tais armas e sem impedir a realização destes atos.
“O direito fundamental à reunião, por buscar garantir a liberdade coletiva de expressão, exige do poder público um dever de não agredir e de se abster de impedir a reunião de quem queira dessa forma democrática manifestar-se”, considerou, lembrando que as recomendações não eliminam o poder da Polícia Militar em sua função de manter a ordem. “Segurança pública não pode funcionar como pretexto ao poder público para, sem mais, agir com violência, como vem agindo, com a evidente intenção de desestimular as pessoas que queiram protestar.”
Ação
A ação foi movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em abril deste ano, tendo a ONG Conectas Direitos Humanos como “amicus curiae”, ou seja, entidade que auxilia na decisão, fornecendo informações e elementos práticos ao magistrado. O mote para a ação judicial foi a ação truculenta da Polícia Militar durante os protestos de junho de 2013, iniciados pela redução da tarifa de transporte público. Em uma só ação, no dia 13 daquele mês, um marco na violência policial durante protestos, a tropa admitiu ter usado ao menos 506 balas de elastômero e 938 bombas de gás lacrimogêneo.
“Essa decisão é como um vento de ar fresco e democrático. O Judiciário está fazendo seu papel, que é controlar a administração pública. Essa situação é muito grave, porque claramente a polícia não está preparada para garantir o direito da população à reunião e à manifestação. Por isso ocorrem violações tão graves”, avalia a diretora de programas da Conectas, Juana Kweitel. “A decisão vem em momento propício, porque o legado de junho foi uma população completamente intimidada. É hora de retomar a discussão sobre qual polícia nós queremos.”
“Movemos a ação um pouco antes da Copa do Mundo, em razão de abusos em diversas manifestações não só em 2014 mas em anos anteriores”, argumenta o defensor público Rafael Lessa, lembrando que as autoridades não se aplicaram em regulamentar o uso de artefatos menos letais em manifestações. “Não tendo havido avanços na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ou no governo federal, a Defensoria optou por ingressar com essa ação.”
Lessa lembra que a Polícia Militar não cumpre nem as normativas internacionais nem seus próprios regulamentos no que se refere ao uso de balas de borracha. “Uma multidão de pessoas em manifestação, seja política ou cultural, não pode ser objeto de tiro de arma de fogo ou de borracha, exceto em casos em que seja localizada nessa multidão pessoas armadas que ofereçam perigo para a manifestação e para terceiros, e por meio de atiradores de elite que teriam como mira específica as pessoas armadas.”
Procurada pela RBA, a Polícia Militar de São Paulo afirmou, em nota, contra centenas de testemunhos e imagens, que “atua dentro dos estritos limites da lei e segundo padrões reconhecidos internacionalmente”. A corporação insistiu em sua disposição em continuar empregando armas de fogo e balas de borracha em protestos populares, e anunciou que “a decisão judicial é provisória e será enfrentada por recurso próprio”.
“A decisão está muito bem fundamentada, e por isso esperamos que ela seja aprovada em caráter definitivo. É para isso que vamos trabalhar. Os princípios que a ação ordena a polícia a seguir são bastante razoáveis e respeitam a autonomia da corporação”, avalia Juana. “A decisão é avançada, principalmente ao garantir que as ações de dispersão só ocorram em casos extremos, quando não houver outra opção para garantir a segurança. os motivos para esse medida deverão ser descritos e publicados, inclusive com o nome de quem deu a ordem.”
Histórico
As balas de borracha empregadas pela PM paulista deixaram ao menos uma vítima grave durante as jornadas de junho de 2013. O fotógrafo freelancer Sérgio Silva, então com 32 anos, perdeu a visão do olho esquerdo após ter sido atingido pelo artefato enquanto cobria um protesto pela redução da tarifa de transporte público no centro da capital em 13 de junho. Na mesma manifestação, a repórter Giuliana Vallone, da TV Folha, também foi atingida no olho por uma bala de borracha, mas teve a visão salva pela lente dos óculos.
Em setembro, conforme revelou a Ponte, a Justiça de São Paulo reformou a sentença que havia condenado o Estado a pagar indenização no valor de 100 salários mínimos ao repórter-fotográfico Alex Silveira, atingido no olho esquerdo em 18 de julho de 2000 por bala de borracha disparada pela Polícia Militar. Na época, Alex, então com 29 anos, trabalhava como fotógrafo do jornal Agora SP. Teve a visão seriamente prejudicada. Pela nova decisão, o Estado não deve pagar nada ao fotógrafo, porque o profissional foi considerado responsável pelo ferimento.
A preocupação com os danos causados pelas balas de borracha chegou ao Congresso Nacional há mais de um ano. Tramita pelo Senado o Projeto de Lei (PLS) nº 300, de 2013, que pretende proibir balas de borracha durante protestos populares no país. Na justificativa do texto, o autor da proposta, senador Lindbergh Farias (PT-RJ), argumenta que, “sem adequado treinamento e sem uma reforma humanitária das polícias, a autorização de uso de bala de borracha acaba resultando em arbitrariedades”.
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa analisa proposta semelhante, o Projeto de Lei nº 608, também de 2013, elaborado pelo deputado estadual Luiz Cláudio Marcolino (PT). “Algo tem que ser feito, com urgência, para impedir o uso dessas munições, antes que elas venham a produzir efeitos letais em manifestantes”, sustenta. Ambas as iniciativas foram motivadas pela atuação das polícias durante as jornadas de junho – e pelos efeitos perniciosos das balas de borracha atiradas contra cidadãos no uso de suas liberdades democráticas.
A Resolução Nº 6 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, publicada em 18 de junho de 2013, reforça a cautela no uso das balas de elastômero e outros artefatos. Assinado pela então ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, o documento afirma que o uso das armas “somente é aceitável quando comprovadamente necessário para resguardar a integridade física do agente do poder público ou de terceiros, ou em situações extremas em que o uso da força é comprovadamente o único meio possível de conter ações violentas”.