Há menos de um ano, Christopher Devonny, 21 anos, precisou sair de casa por conta dos conflitos que vivia com o ex-marido. Sem alternativa, o jovem chegou a morar nas ruas de Belo Horizonte por mais de três meses. "Eu não aprendi a pedir, como via os outros fazendo. Então sofri muito com a fome, fiquei três dias sem comer", conta emocionado. E foi no voluntariado que ele pode encontrar um novo sentido para vida após meses de tantas dificuldades que jamais imaginou passar.
"Consegui mudar para uma ocupação, mas tive muitas frustrações, não estava conseguindo emprego por conta da pandemia. E eu fiquei sabendo das cozinhas solidárias e pedi para participar. Passei a vir todos os dias, foi algo muito libertador pra mim, eu me senti útil, tive mais esperança e perspectiva de vida, além de ver que não estava tudo perdido", disse. Atualmente, ele é o cozinheiro do projeto, que é realizado em parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Só em Minas Gerais, as entidades mantêm 14 cozinhas solidárias, que distribuem marmitas com alimentos saudáveis para moradores de rua e comunidades carentes. Um financiamento coletivo segue em andamento para financiar as estruturas já existentes e também ajudar a expandir o projeto por todo o país, que já existe em outros dez estados – dos R$ 750.000 da meta, foram arrecadados mais de R$ 733.000. Voluntário do MTST, Christopher atua na cozinha localizada na sede do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores da Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro), no bairro Floresta, região Leste da capital.
De segunda a sexta-feira, são distribuídas de 300 a 500 marmitas por dia na região Central e em ocupações. "Começamos com 100, mas vimos que com pouco material para trabalhar, como panelas e tachos, era possível ampliar. Produzimos comidas mais saudáveis com legumes e frutas", frisou Christopher. Mas a dificuldade para garantir os mais de 80 kg de alimentos a cada distribuição é enorme.
"Já houve dias em que não tinha carne. O principal desafio hoje é a garantia da alimentação diária, porque a cozinha solidária faz comida com o que é doado. E quando não tem doação, não tem comida e distribuição. Precisamos da ajuda das pessoas, sejam alimentos ou recurso financeiro para garantir a compra de comida", afirmou a voluntária do MST, Letícia Souza, 27 anos.
Segundo ela, muitas pessoas só têm essa marmita como garantia de alimento durante o dia. "As pessoas já pegam e saem abrindo, andando e comendo. Então você vê que as pessoas estão realmente passando fome. E a marmita às vezes chega cedo, às vezes mais tarde. Independente do horário, você vê que as pessoas estão esperando pela comida", enfatizou.
Michel Willer, 25, voluntário do MTST, também viveu a realidade das ruas de perto. "Com a pandemia, eu perdi meu emprego e não pude pagar o aluguel. Fui despejado, fiquei dois meses morando na rua. Vejo no projeto muitos trabalhadores que antes tinham emprego formal colocando a mão dentro de uma lixeira para pegar latinha e complementar a sua renda. Essa é a situação do Brasil", resumiu. Gleider, 22, vive em uma tenda improvisada com cobertores na rua Mucuri. "Chamo de quitinete", brincou.
Todos os dias, ele, que trabalha com reciclagem, busca uma marmita na cozinha solidária. "Nós que estamos em situação de rua nesta região ficamos à deriva durante o dia, já que temos só o lanche da manhã no abrigo. Tem até o popular, mas não são todos que possuem a carteirinha gratuita", afirmou. Cantor conhecido como Milano, Isaquel, 37, também recebe a comida. "É uma alimentação saudável e ajuda muito no dia a dia", disse.
Falta de água paralisa projeto
Ex-usuário de crack e traficante, Igor Lana, 41, conseguiu largar o vício e passou a dedicar a sua vida para ajudar o próximo. Depois de se mudar para a ocupação Terra Nossa, no conjunto Taquaril, região Leste de BH, ele passou a fazer comida para moradores de rua, mesmo desempregado. "Andava a pé até o Centro da cidade, levando dois garrafões com café com leite e uma bolsa de pães. Mas eu notei também que tinham muitos vizinhos passando necessidade quando a pandemia apertou", relatou.
Com uma doação de 20 cestas básicas, ele iniciou o projeto de uma cozinha solidária na região. "Vimos que isso não dava para dividir com todo mundo, então eu comecei a fazer comida pronta no almoço e o pessoal buscava com a sua vasilha", acrescentou. O projeto ganhou fôlego e Igor Lana chegou a ajudar a alimentar mais de 300 pessoas por dia e foi até convidado para participar do Caldeirão do Huck, na Rede Globo, para contar sobre a iniciativa.
"A cozinha solidária ajuda muito né, porque está tudo muito caro. Começou a sobrar um dinheirinho para muita gente poder juntar e comprar o gás, o alimento para o fim de semana e até tijolo para sair do madeirite", pontuou. Porém, há mais de um mês o projeto precisou ser paralisado. O motivo: não há água suficiente para cozinhar e lavar as panelas e utensílios após o uso.
Conforme Igor Lana, a ocupação, que não tem ligação regularizada de saneamento básico e energia, conta com uma bomba para puxar a água de um poço artesiano. E por conta da precariedade da ligação elétrica, o equipamento não consegue levar o recurso com regularidade. "A água que fica na caixa tem que durar de 4 a 5 dias, então é impossível continuar com a cozinha. Muita gente dependia desse almoço, nem todos conseguem ter uma verdura, um ovo em casa. A carne então nem se fala, está fora do padrão. eu mesmo só como uma vez por semana quando dá".
Transformação social
Uma semente que começou com a distribuição de marmitas a partir de insumos de um restaurante que precisou fechar por conta das restrições das atividades no início da pandemia para um projeto de transformação social. Essa é a intenção do Cozinha que Abraça, idealizado por Renata Camargo, 49. "A ideia nasceu na pandemia por vermos que as pessoas nas ruas ficariam sem recursos, com tudo fechado, e a fome ia pegar. Encerraríamos as atividades em setembro, depois dezembro e no fim decidimos não parar", explicou.
Mesmo após um incêndio destruir a cozinha do projeto, que é alugada, em maio, Renata não parou e continuou com a distribuição de marmitas por toda a cidade – a reforma do espaço está em andamento graças a um financiamento coletivo. "Percebemos que muitas pessoas descem da comunidade em busca de um marmitex na rua. E sempre questionamos, dá para perceber quem está na rua e quem não está. A pessoa conta que não mora na rua, mas precisa dessa comida porque se não vai ter que repartir o pouco que tem com quem está em casa", revelou.
E muito mais que uma cozinha solidária, a rede de ajuda começou a ser ampliada. No último mês, foi oferecido um curso profissionalizante com técnicas básicas de gastronomia para 12 ex-moradores de rua. "Eu via pessoas com até 20 anos de rua, tendo uma oportunidade e fazendo coisas aqui com uma delicadeza como se já tivessem tido experiência com aquilo por muito tempo", detalhou.
Outra iniciativa é o acolhimento integral de quase 20 famílias, como a da Deisiane Magalhães, que cuida sozinha de seis filhos e não pode sair de casa para trabalhar por conta do filho, que tem um transtorno psicológico. Todo o mês, são enviadas cestas básicas, frutas, legumes, ovos, material de limpeza, higiene pessoal, leite e biscoitos. "A Renata se tornou um anjo na minha vida. Se não fosse, seria muito mais díficil", finalizou.
Fonte: O Tempo, por Lucas Moraiso