Projeto do governo que está na Câmara pretende efetivar a transferência de cerca de R$ 1 trilhão dos fundos de pensão para o mercado financeiro administrar
Quando falamos em previdência complementar, em previdência social, nas relações de proteção social e de trabalho, antes de tudo precisamos pensar que isso está intimamente ligado ao desenho do tipo de Estado que pretendemos construir. Que tipo de Estado que nós, como cidadãos, queremos legar às futuras gerações? E como que nós, participantes ativos desse processo e da sociedade podemos interferir, com as nossas limitações?
Da parte que nos diz respeito diretamente, acredito que temos que fazer com que a previdência complementar seja vista pelo governo, pela sociedade e por seus próprios dirigentes pela sua importância estratégica, que pode contribuir para a retomada do crescimento e do desenvolvimento do país. Se voltarmos à origem da previdência complementar, esse era o objetivo: ser uma poupança de longo prazo para ser utilizada pelo governo para efetivar políticas de desenvolvimento social e de crescimento do país, e também como proteção dos trabalhadores, já que foi criado em substituição à aposentadoria das estatais, com o compromisso do governo de garantia de todos os direitos que as categorias tinham à época.
O Brasil, atualmente, tem alguns problemas a serem resolvidos, começando pela necessidade de organizar urgentemente a retomada do crescimento econômico, sem o qual não existe possibilidade de sair da crise em que nos encontramos. Um crescimento sustentável, de longo prazo. Ao mesmo tempo, os fundos de pensão precisam de investimentos que ofereçam garantias de sustentabilidade, de possibilidades de alocação de seus recursos de forma a garantir o pagamento das previdências futuras, tudo lastreado na relação com a meta atuarial, na segurança e na solvência desses investimentos. Ora, observando essas duas necessidades, temos aí o que os economistas chamam de “casamento perfeito”. Precisamos lembrar que um dos períodos em que o país teve alto índice de crescimento e baixo nível de desemprego foi quando alguns fundos optaram por investir na economia real, nos grandes investimentos em infraestrutura, tentando fugir da lógica do “rentismo” absoluto.
Mas, para que o casamento seja de fato bem-sucedido, é preciso que o governo assuma que os recursos dos fundos de pensão são privados, de propriedade exclusiva dos trabalhadores, que contribuíram durante uma vida de trabalho para a formação dessa reserva. Portanto, para a segurança desses investidores são necessárias garantias de que os negócios ofertados tenham qualidade técnica e que tragam resultados sustentáveis em prol dos participantes. Que os contratos serão honrados na sua plenitude, que haverá definição de regras para análise das propostas, com aperfeiçoamento do acompanhamento e fiscalização por parte dos órgãos competentes. E, principalmente, que os resultados acumulados sejam revertidos em benefícios dos participantes e assistidos, resgatando a credibilidade do sistema fechado de previdência complementar.
Além disso, assegurar a presença de representantes dos trabalhadores na gestão dos fundos de pensão é de fundamental importância para proteger o patrimônio dos participantes. Essa conquista histórica, está sob ameaça permanente em todas as propostas de mudanças intentada pelos governos e pelas patrocinadoras dos planos de previdência complementar fechada, desde a promulgação da lei 108/2001, que garante essa participação. Essa é uma contrapartida da Emenda Constitucional nº 20/1998, que trouxe a paridade em tudo: na contribuição, na distribuição do resultado negativo, ou seja, em todos os compromissos, o que é sempre bem observado pelo governo e pelos órgãos de regulação e de fiscalização. Contudo, quando a questão é o poder de mando, ele é reconhecido tão somente ao governo e às empresas patrocinadoras.
Por isso, a Associação Nacional de Fundos de Pensão e de Beneficiários de Saúde Suplementar de Autogestão (Anapar), em seus debates e em sua atuação, se posiciona com o compromisso de defender sempre que o ator mais importante do sistema de previdência complementar são os trabalhadores, são os participantes. Os fundos de pensão são meros administradores, o governo e as empresas que patrocinam são parceiros no processo de investimento e de controle, e todos se beneficiam de maneira adequada. Precisamos colocar o participante na centralidade do debate e do processo, para acompanhar cada vez mais a gestão dos fundos de pensão, ter influência no processo de investimento e ser beneficiado com os resultados.
E o que temos pela frente? Uma nova proposta de mudanças no marco legal do sistema – Leis Complementares 108 e 109/2001 – propostas pelo mercado financeiro e pelo governo. Desta vez estes setores se apropriaram da obrigatoriedade de ajuste em função da Emenda Constitucional nº 103/2019 voltada ao setor público, para incluir diversos “bodes” que fragilizam ainda mais o sistema de previdência fechado. O principal argumento é a “harmonização” entre os sistemas fechado e aberto de previdência complementar, ou seja, entre os fundos de pensão e os bancos e seguradoras. A Anapar vem denunciando e alertando os participantes sobre isso há muito tempo, pois sabemos que o objetivo final é transferir os recursos dos fundos de pensão para o mercado financeiro, o que temos conseguido, de alguma forma, impedir até hoje. Nosso desafio será impedir que esse projeto de lei extrapole as exigências da EC 103 para impor a política de terra arrasada ao sistema fechado.
Há em tramitação na Câmara dos Deputados, atualmente, 16 projetos de alteração das LC 108 e 109/2001, dentro os quais o Projeto de Lei Complementar 84/2015, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), construído com a Anapar, que precisa ser resgatado e atualizado, na perspectiva dos interesses dos participantes. Não podemos sucumbir diante dos interesses único e exclusivos do mercado financeiro. Esta não é a primeira iniciativa de desmonte do sistema fechado e não podemos ser inocentes de achar que os fundos de pensão terão o mesmo nível de concorrência que os bancos, que têm formas muito mais eficientes de “vender” um produto.
Precisamos deixar claro o que significa a harmonização: a transferência do patrimônio de cerca de R$ 1 trilhão para ser administrado pelo mercado financeiro. E com essa transferência, os bancos, que têm fins lucrativos, ao contrário dos fundos de pensão, já ficam com 30% do resultado do investimento. E não temos como saber, ainda, qual será o nível de frustração de expectativas, uma vez que a relação do participante com as entidades abertas se rompe antes do período de recebimento do benefício de aposentadoria. Nosso sistema, que tem tanto a contribuir para o país, está sendo jogado fora por uma visão caótica de país por parte do governo, que está apenas beneficiando o setor financeiro e as seguradoras.
Por Marcelo Camargo/Agência Brasil