Feminicídio: o caso de Manaus e o dezembro mais letal da história



Feminicídio: o caso de Manaus e o dezembro mais letal da história

A violência é um termo amplo e pode variar desde eventos não-letais como furto, onde não há contato entre a vítima e o criminoso, por exemplo, até a sua expressão máxima, o homicídio ou uma morte resultante de agressão provocada intencionalmente por outra pessoa, seja ela conhecida ou não.

Embora o fenômeno da violência urbana, em especial o homicídio (popularmente conhecido como assassinato), esteja em queda nos países considerados “desenvolvidos”, naqueles considerados “em desenvolvimento”, como o Brasil, esse ritmo não é tão claro e seu comportamento é muito distinto, dependendo do tamanho da cidade e da região considerada. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, a mortalidade por homicídio parece estar se agravando, embora a pandemia de Covid-19 tenha alterado o padrão de ocorrência desses crimes em 2020 e 2021, seja com a interrupção de aumentos consecutivos ou mesmo com a importante queda da mortalidade por homicídio.

No caso de Manaus, no ano pandêmico de 2020, parece ter ocorrido importante queda no número de homicídios, em comparação aos últimos sete anos (Figura 1), dados que, ainda assim, colocam a capital amazonense como uma das mais violentas do país, a partir do indicador de homicídios.

Embora o número total de homicídios em mulheres seja muito menor do que o observado nos homens, cerca de 14 vezes menor em Manaus, quando olhamos o total de registros entre 2000 e 2020 é importante destacar que, em geral, cerca de metade dos homicídios de mulheres é cometido por parceiro íntimo (namorado, ex-namorado, companheiro e ex-companheiro, principalmente), em contraposição aos 6% comumente observados para os homicídios de homens.

Portanto, o peso negativo da violência contra a mulher é mundialmente claro, quando se olha os dados de mortes intencionais entre os sexos e se evidencia a injusta e desleal carga das iniquidades de gênero sobre os padrões de mortalidade feminino. Este grave e negligenciado problema de saúde pública é conhecido como feminicídio – assassinato intencional de uma mulher por razões de gênero ou simplesmente por ser mulher.

Até o momento, inexiste uma forma padrão e mundialmente difundida para caracterizar o feminicídio, ou seja, a depender de quem, onde e quando avalia-se um caso suspeito, pode-se subestimar ou superestimar o tamanho do problema. No entanto, como se trata de assunto prioritário e que, aos poucos, vem ganhando mais visibilidade, seja nas estatísticas gerais, em termos jurídicos, na imprensa ou até mesmo no imaginário popular, a discussão do assunto é sempre necessária, especialmente quando a sua invisibilidade limita a implementação de políticas públicas que visem à redução desta repugnante e covarde causa de morte.

Um dos poucos estudos científicos publicados sobre o tema na região Norte do Brasil avaliou os homicídios intencionais de mulheres com enfoque nos feminicídios ocorridos em Manaus durante os anos de 2016 e 2017, e apontou que cerca de 40% das mortes de mulheres maiores de 11 anos foram feminicídios, ou seja, a cada 10 homicídios de mulheres, quatro foram prováveis feminicídios, e em torno de 30% e 20% das vítimas de homicídio sofreram violência sexual e fizeram uso de álcool antes da agressão, respectivamente.

O referido estudo foi ampliado e, em janeiro de 2022, entrou no seu sétimo ano de monitoramento dos homicídios intencionais de mulheres com 12 anos ou mais, focando nos feminicídios ocorridos na cidade de Manaus. Este esforço de pesquisa não apenas tem permitido acompanhar o comportamento da violência homicida contra a mulher ao longo do tempo, como também tem mostrado a ocorrência de comportamentos fora do comum ou anômalos, como o observado em dezembro de 2021, marcado pela maior ocorrência de homicídios em mulheres com 10 anos ou mais que se tem conhecimento na cidade e no mês de dezembro, com 10 mortes.

E em plena pandemia de Covid-19 houvea clara retomada do número de homicídios intencionais em mulheres com 10 anos ou mais em Manaus, durante o período considerado na pesquisa (2016-2021). Portanto, embora esses números ainda sejam preliminares, é possível notar que o total de homicídios intencionais em mulheres com 10 anos ou mais em Manaus no ano de 2021 voltou a se assemelhar ao que se observava antes da pandemia de Covid-19.

Chama atenção que do total de 10 homicídios intencionais em mulheres com 10 anos ou mais em Manaus, e no mês de dezembro de 2021, há 4 prováveis feminicídios ou 40% do total, um valor muito próximo ao encontrado no biênio de 2016-2017, também em Manaus. Esta trágica estatística sugere, por um lado, que a porcentagem de feminicídios não se alterou tanto em Manaus em dezembro de 2021, em comparação ao padrão mais geral observado no estudo que calculou essa porcentagem em 2016-2017.

Por outro lado, entre seis (6) mortes não classificadas como feminicídio, em quatro (4) havia indícios do envolvimento dessas mulheres com o tráfico de entorpecentes ou envolvimento direto com atividades consideradas ilícitas. Em geral, associados às facções criminosas que se proliferaram de forma alarmante no Amazonas, especialmente nos últimos oito (8) anos.

Um dado que evidencia a importância da violência letal e da crescente inserção das mulheres em atividades ilícitas é o de que nenhuma das 10 mortes ocorridas em dezembro de 2021 foi por latrocínio (roubo seguido de morte) ou quando as mulheres têm um papel passivo e não ativo na criminalidade, por exemplo.

Por fim, este estudo evidencia que é não apenas necessário entender a dinâmica da violência letal em mulheres no Amazonas, como também buscar alternativas para dar maior visibilidade a este inaceitável tipo de crime, em especial o feminicídio. A título de exemplo e considerando que estamos nos referindo a dados ainda não finalizados, mas que dão uma boa ideia do tamanho do problema, em 2019, de acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública do Amazonas, ocorreram em torno de 12 feminicídios em Manaus. No entanto, dados do nosso estudo sugerem um total radicalmente diferente, 35 ou quase 200% a mais do que o número oficial divulgado pela Secretaria de Estado da Segurança Pública do Amazonas, em que pese o caráter preliminar de ambas as fontes e os diferentes contextos de produção do dado, como os critérios usados para a classificação de possíveis feminicídios.

Portanto, é urgente o aperfeiçoamento e ampliação de estratégias que permitam uma melhor compreensão da dimensão da violência letal contra a mulher, em especial do feminicídio. Assim, tanto o poder público como a sociedade poderão atuar de forma mais efetiva na prevenção dos feminicídios, limite mais extremo da violência contra a mulher.

Fonte: Brasil de Fato, por Jesem Orellana Amazônia Real, foto: Arquivo Levante Feminista

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