‘Estamos aqui para dizer que a democracia não vai embora’,



‘Estamos aqui para dizer que a democracia não vai embora’,

No ato inter-religioso que lotou a Catedral da Sé, em São Paulo, na manhã do sábado (16), difícil imaginar um encontro mais simbólico do que a troca de abraços entre Alessandra Sampaio, Beatriz Matos e Clarice Herzog, no mesmo local que abrigou culto ecumênico em outubro de 1975 pelo jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura no DOI-Codi paulista. Com dois filhos pequenos, Clarice era casada com Vlado quando o crime aconteceu. Hoje, ao lado do filho Ivo, ela encontrou as companheiras de Bruno Pereira e Dom Philllips, assassinados na Amazônia há pouco mais de um mês. Momentos históricos diferentes, mas ligados pela apologia à violência.

Foi assim que dom Pedro Stringhini, bispo da Diocese de Mogi das Cruzes e presidente da Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fez a comparação entre o que Brasil viveu e vive, ao homenagear Vlado, dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, protagonistas daquele ato, ao lado do reverendo James Wright. “Cinquenta anos depois, estamos aqui para dizer que a democracia não vai embora”, afirmou, fazendo as pessoas se levantarem para aplaudir. “Que haverá eleições e haverá democracia. Esta Catedral da Sé mais uma vez acolhe um culto em favor dos direitos humanos, da justiça e da paz.”

Crime político

Para o bispo, é preciso “clamar por justiça” diante dos ataques aos povos indígenas e da degradação da Amazônia e outros biomas brasileiros. Dom Pedro também manifestou solidariedade a Pâmela, viúva do guarda municipal e dirigente petista Marcelo Arruda, assassinado há uma semana por um bolsonarista em Foz do Iguaçu (PR). E questionou as conclusões do inquérito anunciadas ontem (15). “Crime político, por mais que a polícia do Paraná diga o contrário.”

Segundo ele, o discurso de ódio e a apologia às armas fez crescer a violência no país. O bispo afirmou que segurança se consegue por meio da “educação com qualidade, através dos livros, não das armas”. E defendeu ir à ruas, se for preciso, para defender a democracia e o processo eleitoral, com união das forças progressistas, “para que a civilização vença a barbárie”. “É preciso sonhar, reconstruir o nosso país.”

Mãos para acolher, não para atirar

O pastor pentecostal Eliel Batista também defendeu o engajamento em favor dos povos indígenas, “para aprender com eles como tornar o mundo habitável”. Afirmou que é preciso trabalhar para “resgatar nossa terra dessa maldição”, falando da violência e de quem a pratica ou defende. “Que sejam tirados do nosso meio todos os que promovem a morte, que dizem ‘E daí?’. Jamais admitamos a violência institucionalizada, não usando as mãos para fazer símbolo de arma, mas para acolher os que sofrem. Não há paz sem justiça.” Ele concluiu com frase atribuída ao líder mexicano Emiliano Zapata: “Se não há justiça ara o povo, que não haja um segundo de paz para um governo perverso”.

Também falaram – e oraram – a ialorixá Omi Lade, a representante da comunidade judaica Lúcia Chermont e Leonel Sá Maia (Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dia). Depois da apresentação da cantora lírica Tati Helene e da exibição de um vídeo com uma dos coordenadores da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), Beto Marubo a educadora Claudine Melo e o ator Tadeu Di Pietro leram breves biografia de Bruno e Dom, passando a palavra às suas companheiras.

Persistência e esperança

Alessandra fez reverência aos povos indígenas. “Graças a eles, nossas florestas continuam de pé. A gente tem que se unir a essa luta, que é nossa também.” E se emocionou ao falar de Dom, “o meu grande amor, a pessoa mais incrível que eu conheci, um ser humano maravilhoso”.

Segundo ela, o jornalista inglês possuía três qualidades que a marcaram: “A persistência em aprender, a entender a cultura brasileira, a sociedade, as desigualdade que a gente tem no Brasil, a fazer trabalho social, se engajar, ouvir as pessoas, saber o que as pessoas tinham a dizer. Ele tinha um profundo respeito pelas pessoas e pela natureza. A ética humana, sempre checar as informações, nunca levar uma informação leviana e sempre permitir o direito de resposta de quem estivesse nas suas reportagens ou pesquisas. E esperança, de que a gente realmente poderia mudar situações difíceis. Mas só se a gente só estivesse ativamente envolvido nesses movimentos de mudança. A gente não tem opção, a gente tem de seguir essa luta.”

Segundo o relato de Beatriz, o indigenista Bruno era “muito movido por amor, até quando era bravo, intransigente”. “Para ele, nada era mais importante do que a defesa dos direitos dos povos indígenas, os povos tradicionais de uma maneira geral, no sentido de que são eles que garantem a biodiversidade, a nossa existência nesta terra.” A floresta, o mato, era o lugar onde Bruno gostava de estar. Beatriz e Alessandra foram homenageadas, também, pelo coletivo Flores de Resistência.

“Maldade de gente boa”

Já quase no final, o cantor Chico César se apresentou, todo de branco, e interpretou duas músicas. A primeira foi Beradêro.

Cadeiras elétricas da baiana
Sentença que o turista cheire
E os sem amor, os sem teto
Os sem paixão sem alqueire
No peito dos sem peito uma seta
E a cigana analfabeta
Lendo a mão de Paulo Freire

A contenteza do triste
Tristezura do contente
Vozes de faca cortando
Como o riso da serpente
São sons de sins, não contudo
Pé quebrado verso mudo
Grito no hospital da gente

A segunda, com violão, foi Deus me proteja.

Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim

Um telão na catedral exibiu um vídeo que viralizou após o assassinato de Bruno, em que o indigenista entoa uma canção indígena na floresta. Logo depois, Jurema Marques de Araújo (Comunidade Bahá’í do Brasil) e o monge budista Ryozan leem manifesta em defesa dos povos indígenas. O texto alerta para a “evidente corrosão democrática” no país. Pontualmente ao meio-dia, o ato termina com a cantora Daniela Mercury interpretando O canto da cidade e, por fim, o Hino Nacional.

Como em 1975, os presentes são orientados a sair com tranquilidade e não aceitar possíveis provocações nas ruas.

Por Vitor Nuzzi, da RBA

 

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