De acordo com dados levantados no Dossiê Big Food: Como a indústria interfere em políticas de alimentação, produzido por organizações da sociedade civil, a indústria de alimentos no Brasil exerce cada vez mais influência política, social e até intelectual em decisões que têm impacto diretamente na saúde da população.
O documento mostra que, em 2014, 57% dos deputados e 48% dos senadores eleitos receberam dinheiro do setor, composto por grandes conglomerados de ultraprocessados, multinacionais das bebidas açucaradas e fabricantes de toda sorte de produtos que distanciam consumidores e consumidoras da alimentação in natura.
Atualmente, o cenário pode ser ainda pior. Segundo Marília Albieiro, engenheira e coordenadora do projeto Alimentação da ACT Promoção da Saúde, os dados de hoje são escassos, mas é possível ter uma ideia da abrangência dessa indústria na análise de informações sobre o crescimento do setor nos últimos anos.
“Em 2007, o tamanho do faturamento da indústria de alimentos, das dez maiores, era de R$ 61 bilhões. Elas representavam apenas 27% de toda a cadeia alimentícia. Passados 12 anos, em 2019, esse número passou para R$ 532 bilhões e houve uma concentração de poder. Hoje eu tenho as dez maiores empresas representando 75% (de toda a cadeia alimentícia). Ou seja, o setor cresceu e se concentrou. Não tem jeito, concentração de poder econômico resulta em interferência no poder político.”
Laís Amaral, nutricionista e supervisora técnica do Programa de Alimentação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), afirma que a teia de influências da indústria dos alimentos é complexa e articulada.
“Acaba abraçando todas as áreas para poder, de fato, ter uma influência completa em relação a essas políticas. O próprio conceito de alimentação saudável, muitas vezes, tem a interferência da indústria.”
As duas pesquisadoras participaram da elaboração do dossiê, produzido pela ACT e pelo Idec. Em entrevista ao programa Bem Viver, elas falam sobre o assunto e defendem regulação do setor e formação crítica para que a população saiba o que está ingerindo e possa se defender do aumento do consumo de industrializados.
Segundo os dados levantados pelo dossiê, 57% dos deputados e 48% dos senadores eleitos em 2014 receberam dinheiro da indústria de alimentos ultraprocessados. Isso inclui fabricantes de bebidas e alimentos ricos em sódio, açúcar e gorduras, substâncias diretamente ligadas ao desenvolvimento de doenças crônicas. São males que hoje causam 70% das mortes no Brasil. Como nós podemos explicar para as pessoas quais são as consequências dessa influência?
Marília Albieiro: Esses dados são de 2014, quando ainda tínhamos o mínimo de informação sobre financiamento de campanha. Hoje, não conhecemos mais nada e pode até ser que esse número tenha ficado maior.
Há outros dados para termos uma ideia. Em 2007, o tamanho do faturamento da indústria de alimentos, das dez maiores, era de R$ 61 bilhões. Elas representavam apenas 27% de toda a cadeia alimentícia. Passados 12 anos, em 2019, esse número passou para R$ 532 bilhões e houve uma concentração de poder. Hoje eu tenho as dez maiores empresas representando 75% (de toda a cadeia alimentícia).
Ou seja, o setor cresceu e se concentrou. Não tem jeito, concentração de poder econômico resulta em interferência no poder política. Não tem como dissociar esses dois fenômenos. Isso impacta no dia a dia, e muito.
Nós não temos a mínima opção de escolha. Achamos que somos livres, que podemos escolher o que comemos. Não. Se você olha todo o ambiente em que somos inseridos, ele é o resultado do que essa grandes corporações estão definindo, o que temos que comer e onde comer, seja interferindo no preço, na publicidade e no acesso.
Esse é o primeiro impacto que temos de uma grande concentração de poder econômico: na nossa liberdade de escolha. Quando isso é transferido para o poder político, está dentro de todo o arcabouço político e interfere para que empresas e conglomerados mantenham o lucro e evitem o avanço de políticas públicas contrárias aos interesses.
Quando trazemos a questão da indústria dos ultraprocessados, hoje existe uma correlação muito grande com as doenças crônicas, como sobrepeso, obesidade e diabetes. Então, as políticas públicas de saúde e alimentação teriam que ser em prol, cada vez mais, de uma alimentação minimamente processada e in natura.
Isso significa que a indústria teria que perder poder e perder espaço, então ela vai interferir em todos os aspectos possíveis. Nós temos medidas fiscais que poderiam, de fato, desonerar produtos saudáveis e não acontecem. Temos desoneração para produtos que fazem mal à saúde, como o refrigerante, que recebem benefícios, o que é uma incoerência.
Temos outras políticas, por exemplo, agora que a rotulagem está entrando em vigor, depois de mais de seis anos teremos o consumidor com o mínimo de uma informação adequada. Tem uma interferência bastante grande (da indústria).
O dossiê aponta que a influência dessas grandes indústrias da alimentação ser dá também em outra frentes: na mídia e na produção de pesquisas acadêmicas, por exemplo. Como a indústria constrói essa teia e quais são as intenções por trás disso?
Laís Amaral: Ela acabam abraçando todas as áreas para poder, de fato, ter uma influência completa em relação a essas políticas. No caso da mídia, a indústria interfere muito em como a mídia vai pautar determinados assuntos relacionados à alimentação. O próprio conceito de alimentação saudável, muitas vezes, tem a interferência da indústria por trás.
Nós vemos muito a indústria pautar o seu posicionamento para que a imprensa reverbere isso como se fosse uma verdade absoluta. Vemos muito dessa questão de como a alimentação é uma questão nas doenças crônicas e na obesidade, mas não só isso, que a obesidade e as doenças crônicas são multifatoriais, que precisamos também pensar na questão do exercício físico, do estresse, do sono.
A indústria acaba tentando trazer outros vieses para tirar a atenção da alimentação. Dizem que é só você comer com equilíbrio que não faz mal para a saúde. De novo tirando a responsabilidade que tem uma alimentação inadequada com produtos não saudáveis.
Vemos isso também em relação às políticas públicas. A rotulagem, por exemplo, como uma mídia ou outra trazem um lado só da questão, só a indústria falando sobre como a rotulagem pode causar perdas econômicas. Nem sempre vemos os dois lados da moeda.
Sobre a questão dos pesquisadores, são pessoas que têm uma credibilidade grande, não só para a população, mas com o próprio governo, agência reguladoras, parlamentares. O financiamento de pesquisas com conflito de interesses, que são pagas pela indústria, vai trazer um resultado que é a favor do que a indústria defende. Claro, nós trabalhamos para desconstruir esse tipo de discurso, contra-argumentar. Mas vemos isso com muita frequência.
O estudo apontas soluções para reverter o cenário. Quais seriam?
Marília Albieiro: Esse tipo de interferência ocorre desde o nível global até o nível municipal, são várias camadas. Uma das grandes falhas da nossa formação escolar é não termos uma formação para sermos cidadãos, achamos que a nossa participação política é o voto, como um cheque em branco.
Um dos grandes conhecimentos adquiridos trabalhando com organizações que promovem política pública é essa formação completa do cidadão, esse olhar vigilante. A sociedade tem que estar engajada. Estamos fazendo uma parte disso com o desenvolvimento do pensamento crítico, de olhar o mundo.
As coisas não acontecem por acaso, é tudo um conjunto de forças econômicas e políticas que definem absolutamente tudo na nossa vida. Não temos esse olhar, esse despertar. O dossiê detalha as estratégias, que são muito sofisticadas. Isso tudo tem que ter denúncia, tem que ter o apoio da população.
Laís Amaral: Temos também outras estratégias de mitigação que vão permear diversas áreas. Mais especificamente em relação ao governo é importante termos a clareza da necessidade da transparência das relações.
Por exemplo, temos a lei de acesso à informação, que permite a qualquer cidadão ter acesso a atas de reuniões, documentos públicos, para que saibamos o que acontece a portas fechadas. Outra questão importante é a transparência das agendas das autoridades. Com quem determinado ministro se encontrou? Qual é o tema da reunião?
Outra questão interessante, que não está implementada no Brasil, mas foi recentemente publicada pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), é um instrumento que traz para a gente uma avaliação sobre o potencial da interação do governo com agentes externos. Um questionário que se aplica em relação a qualquer tipo de interação, para avaliar. Vai haver uma reunião com uma pessoa específica da indústria tal. Essa interação tem um potencial risco de conflitos de interesses? Qual é a consequência desse conflito? Serve para trazer um entendimento maior sobre aquela questão.
Podemos pensar nisso também para a ciência. Temos mecanismos de transparência, de relatar conflito de interesses quando se publica uma pesquisa ou se oferece uma aula, uma palestra em um congresso ou evento científico. Essa declaração do conflito de interesse é importante, dá transparência. Não impede o conflito, mas mostra o conflito para trazer o pensamento crítico. Temos uma gama importante de saídas, mas é sempre importante efetivá-las e monitorá-las.
Vocês trazem no estudo também casos que demonstram essa estratégia. Que exemplos são esses e o que eles dizem?
Laís Amaral: Na rotulagem nós vemos uma participação muito grande da indústria do começo ao fim. Ela participou como ator interessado, fez parte da mesa de discussões junto com a sociedade civil, academia e governo.
Durante toda a trajetória dessa discussão, nós vimos muitas estratégias acontecendo. No início do processo, a indústria de alimentos ultraprocessados montou uma coalizão. É como se fosse um grupo de fachada, a cara pública da indústria da alimentos, que era chamada de Rede Rotulagem.
É o que chamamos de atuação em coalizão. Não entram como empresas separadas ou como associação. Fazem a coalizão das associações e falam como se fossem um ser só. É um discurso que acaba sendo mais forte.
Eles tiveram toda a cara pública que você possa imaginar. Sites, redes sociais, financiamento de estudos, realização de eventos. Tudo isso para fortalecer o discurso da indústria, o posicionamento da indústria, para tentar pautar como eles enxergam a rotulagem e a alimentação.
Além disso, o lobby é ainda mais claro. Participação em reuniões técnicas, com diretores, nas discussões do Codex Alimentarius do Mercosul, dois espaços internacionais que discutem o tema e, obviamente interferem nas decisões brasileiras.
Tivemos publicações de pesquisas financiadas pela indústria, pesquisas de opinião da população e até a publicação de artigos científicos com conflitos de interesse tentando prejudicar a imagem do rótulo frontal de advertência, que fala as altas quantidades dos nutrientes críticos.
Nesse caso tivemos, inclusive, uma ação judicial. São aquelas estratégias mais extremas. A indústria entrou com essa ação para prorrogar o prazo de uma consulta pública. Houve essa prorrogação e a indústria ganhou mais tempo. É aquela coisa de atrapalhar o processo, ter mais tempo para tentar reunir mais informações em prol do que a indústria defende.
Tem também muito a questão da argumentação, da estratégia discursiva, de tentar moldar o debate. Falam muito também sobre as próprias ações da indústria. Diminuem porções, tem autorregulação. Eles colocam muito que não precisam de regulamentação, que podem se autorregular, que já estão fazendo voluntariamente.
Colocam muitos desses argumentos e, muitas vezes, esses argumentos são reproduzidos por profissionais de saúde, associações de classe, grupos de fachada e a própria mídia. A rotulagem teve todas as estratégias que você pode imaginar.
Como foi um processo longo, acabou interferindo em diversos âmbitos, internacional, nacional, academia. É um processo de interesse muito grande e foi um exemplo interessante, onde vemos as mais diversas estratégias e argumentos.
Marília Albieiro: Se para algo que é óbvio, como essa questão da rotulagem, a indústria cria tantas cortinas da fumaça, imagina quando ela pega uma assunto como impostos e tributos, sobre o qual a população já desconfia.
Há uma percepção de que o brasileiro paga muito imposto e que há mau uso do dinheiro público. Isso é verdade, mas quando se conta a história completa, vemos que a indústria está pagando pouco imposto e faz todas as escolhas estratégicas para que, em vez de o governo colocar o recurso público onde é preciso, ele coloca para dar subsídio a uma indústria que não faz mais sentido.
Elas usam a organização delas para fazer lobby, reuniões, nota técnicas e se aproveitam de uma série de más interpretações. Por exemplo, se sai um dado de que está caindo o consumo do refrigerante. Lógico, nós que acompanhamos, sabemos que aquela pergunta é se você bebe por cinco dias, que não é só refrigerante, envolve uma gama de outras bebidas açucaradas. Mas eles pegam o argumento e distorcem toda a narrativa.
Percebemos no caso da tributação uma narrativa contra que pega a complexidade de um problema e se aproveita para tumultuar e colocar a cortina de fumaça. O Brasil dá subsídios para as bebidas açucaradas e aí existe todo um jogo de influência dos três poderes.
Desde a Casa Civil, que faz um decreto diminuindo ou aumentando uma determinada alíquota do processo produtivo. Temos toda uma bancada do Amazonas que, independentemente de ideologia, se reúne para manter os privilégios da Zona Franca. Essas ações sempre vão parar no judiciário.
Há também um lobby forte da indústria para derrubar decretos que sejam contra. Há uma ação integrada de lobby nos três poderes. O mais interessante dessa questão da Zona Franca, que usa um crédito tributário, foi liberado na década de 1990 pelo ex-ministro Nelson Jobim. Coincidentemente ou não, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas é Alexandre Jobim, filho dele.
Um dos maiores engarrafadores da Coca Cola no Brasil é o Tasso Jereissati (PSDB), que é senador e faz parte da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, onde está a tramitação do projeto de lei que visa tributar as bebidas açucaradas.
Mostra na prática que os poderes econômico e político se fundem em várias esferas. Vai desde a mídia à população, da esfera política aos agentes econômicos. Usam muito desse arcabouço de pessoas influentes, pegam influenciadores da educação física e outros que tiram o foco da alimentação. A indústria do tabaco foi a grande mãe e professora, é o mesmo jogo de regras que agora está se sofisticando.
Como a população pode ser proteger dessa influência?
Laís Amaral: O primeiro passo é saber o que estamos consumindo, não ser enganado pela publicidade, saber ler o rótulo dos alimentos. Obviamente que as práticas da indústria são mais sofisticadas e precisa de um treinamento maior.
É o que a Marília traz sobre o pensamento crítico e também o interesse. As pessoas podem participar de consultas públicas, podem assistir audiências públicas. Nem todo mundo tem essa noção e essa vontade, é um desenvolvimento a longo prazo.
Tratando mais do alimento, saber o que estamos comendo, saber reconhecer o que é comida de verdade, o que é ultraprocessado são caminhos. Além de ter benefício para a saúde cria também uma mudança de paradigma.
Comer é um ato político e ter noção de como as nossas escolhas também interferem, ter consciência de que o ambiente que nós estamos inseridos – para não culpabilizar o indivíduo – favorece escolhas não saudáveis.
Existe a publicidade enganosa, rótulos que não são claros, preços que não nos auxiliam a fazer boas escolhas alimentares, especialmente agora. Não temos acesso facilitado aos alimentos mais saudáveis nos próprios ambientes que frequentamos, escolas, parques, hospitais, metrôs.
Marília Albieiro: É a dúvida, é questionar, coisa que paramos de fazer. A grande meta não é destruir as corporações, mas elas precisam de regulação, elas precisam evoluir.
Eu vejo dois grandes epicentros de mudança, um é a própria população, cobrando mais, exigindo mais, tem a estratégia do boicote. O outro é o epicentro da regulação. Isso é outra falha da nossa educação, porque vemos que qualquer intervenção do estado é considerado o que eles chamam de estado babá. Mas não é. Existe um limite. É preciso regulação justamente para evitar o rompimento de fronteiras. A corporações são grandiosas, são maiores que muitos países.
De alguma forma essa interferência das grandes indústrias de alimentos na produção de leis que dizem respeito a nossa saúde pode ser considerada uma afronta aos direitos básicos da nossa população?
Marília Albieiro: Totalmente. Há na nossa Constituição o direito humano à alimentação adequada e saudável. Significa estar livre da fome e ter qualidades nutricionais nos alimentos. Pega também outras dimensões, porque isso tem que ser produzido de maneira saudável e sustentável.
Fere-se o direito à saúde, porque o sistema alimentar leva ao consumo de produtos que fazem mal a saúde e vêm de um sistema produtivo que acaba com a nossa vida, traz mudanças climáticas, poluição, agrotóxicos. Eles vão contra qualquer direito que esteja na constituição. Fere o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há um arcabouço de violações legais.
Laís Amaral: temos também a afronta ao direito à informação, tanto na rotulagem como na publicidade. Não temos o cumprimento da informação clara, adequada.
Marília Albieiro: Há um outro conceito, que não tem a ver diretamente com a legislação, que é a sindemia global. O encontro das três epidemias: doenças crônicas, desnutrição e mudanças climáticas. Todas elas são reflexo de um sistema alimentar desequilibrado.
Fonte: Brasil de Fato, por Nara Lacerda