Eny, coragem e doçura



Eny, coragem e doçura

Por Paulo Vannuchi | Comissão Arns

A primeira reunião da Comissão Arns em 2022 foi marcada pela tristeza. Tinha morrido, em 4 de janeiro, uma das mais respeitadas lutadoras dos direitos humanos em nosso país. A advogada Eny Raymundo Moreira estava internada há meses em São Paulo, no Instituto do Coração (Incor), acolhida pelo casal de médicos Helenita e Aytan Sipahy, sua segunda família.

Nascida em Juiz de Fora em 1946, leu uma reportagem da revista Realidade, quando estudava direito naquela cidade, sobre o mitológico defensor Sobral Pinto, e comentou com a mãe: vou trabalhar com esse homem. Foi para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso, já sendo assistente no escritório daquele conservador católico que ousou defender, nos anos 1930, o estigmatizado líder comunista Luís Carlos Prestes, vítima das atrocidades praticadas pela Gestapo de Filinto Muller durante o período ditatorial de Getúlio Vargas.

Eny planejou uma espécie de tocaia na porta da igreja em que Sobral assistia às missas todos os dias, querendo abordá-lo na saída. Pediu para ser estagiária em seu escritório e ouviu como resposta: “Comece amanhã”. O jurista leu nos olhos daquela jovem a certeza de adesão incondicional ao grande lema eternizado por ele: advocacia não é profissão para covardes.

A partir do AI-5, quando as prisões brasileiras se abarrotaram de opositores políticos, quase todos sobreviventes da tortura – que podia oscilar do terror psicológico rotineiro até os mais altos níveis de bestialidade, mas sendo sempre a imprescritível tortura que agride a própria condição humana -, Eny engajou-se de corpo e alma na resistência, como advogada das pessoas perseguidas.

Salvou muitas vidas. Inclusive a de quem assina este texto em nome da Comissão Arns.

Dedicou toda a sua existência e militância jurídica a esse bom combate, que segue ainda longe de terminar, em pleno 2022, neste Brasil que se proclama redemocratizado. Na morte, Eny deixa o meritório rol de advogados que ousaram correr os mesmos riscos de seus clientes, naqueles anos de chumbo, para ingressar na galeria de ícones como o próprio Sobral Pinto, Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright. Poderá ser vista no céu como nova estrela cintilando ternura, generosidade e uma garra invejável.

No dia seguinte à partida dessa lutadora, o poeta Pedro Tierra escreveu: “Eny – uma arquitetura de passarinho – era só coragem nos tempos sombrios”. O verso evoca seu corpo pequeno, rosto muito bonito e longos cabelos negros como as asas da graúna de Alencar.

O mais notório dos juízes auditores sintonizados com o aparelho repressor comandado pelo torturador Brilhante Ustra, de nome Nelson da Silva Machado Guimarães, levado em 2014 às barras da Comissão Nacional da Verdade para depor reconhecendo a existência de torturas sistemáticas (embora mentindo ao negar sua cumplicidade), chegou a fechar-se numa sala com um de seus réus, em 1972, para expressar o medo e ódio que nutria por Eny. Disse sem meias palavras: você não será solto porque contratou essa péssima advogada, que só quer brigar e não defender o cliente.

Nem todos os juízes auditores – os únicos togados nos tribunais militares de exceção que se alastraram pelo Brasil, em circunscrições do Exército, da Marinha e da Aeronáutica – estavam obrigados a esse tipo de servilismo. Ficou marcado o gesto heroico do magistrado Plínio Barbosa Martins, de Campo Grande (MS), que em 1973 lavrou voto em separado discordando da sentença que condenou o missionário francês François Jentel, por violação da Segurança Nacional, quando esse assessor de Pedro Casaldáliga tão somente havia defendido camponeses e posseiros contra ataques de jagunços da empresa Codeara, em disputa por terras em São Felix do Araguaia.

Lembre-se também que esse mesmo Nelson Guimarães, em 1981, condenaria Lula e outros líderes sindicais do ABC paulista a penas de até três anos e seis meses de reclusão, com base nessa mesma e famigerada Lei de Segurança Nacional, por exercerem o elementar direito de greve, universalmente reconhecido por organismos da ONU, como a OIT, e pelos tratados internacionais como o Pacto dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.

Por volta de 1979, nasceu de Eny uma ideia não apenas corajosa, mas em certa medida genial. Trata-se do Projeto Brasil: Nunca Mais, que foi, na prática, a primeira comissão da verdade organizada no país, ainda muito antes do reconhecimento pelo Estado de sua responsabilidade pelas violações sistemáticas do período ditatorial.

Residindo no Rio, sabia que o cardeal de lá dificilmente toparia a parada. Articulou com Luiz Eduardo Greenhalgh, seu companheiro nos Comitês Brasileiros de Anistia, uma consulta a Dom Paulo Evaristo Arns. O patrono de nossa Comissão abraçou imediatamente a proposta, escalando Jaime Wright para erguer o suporte financeiro junto ao Conselho Mundial das Igrejas, sediado em Genebra, na mais absoluta clandestinidade. Eny e Greenhalgh montaram, com Sigmaringa Seixas, em Brasília, um esquema para copiar secretamente todos os processos da Justiça Militar que tinham chegado ao Superior Tribunal Militar (STM).

Circulou amplamente nas redes sociais um texto escrito por Frei Betto – religioso, mas sempre jornalista – narrando o emocionante Natal de 1972 em que Eny se deslocou até a longínqua penitenciária de Presidente Venceslau, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, para visitar os seis presos políticos que tinham sido transferidos para lá em meados do ano. Foram deportados do Presídio Tiradentes como represália a uma greve de fome declarada pelos presos políticos, em protesto contra as condições carcerárias a que estavam submetidos na capital paulista.

Um deslocamento tão extenso representava esforço físico redobrado para Eny, que desde a infância conviveu com alguma dificuldade ao caminhar, sequela da poliomielite que ainda grassava pelo país antes de ser contida por uma ampla cobertura de vacinação assegurada pelo Estado brasileiro.

Visitou Betto e outros dois dominicanos, Fernando de Brito e Yves Lesbaupin, bem como o jornalista Maurice Politi, o advogado Wanderley Caixe e o camponês Manoel Porfírio, filho do legendário líder da luta pela reforma agrária em Trombas e Formoso (GO) nos anos 1950, José Porfírio, que se tornaria deputado estadual em 1962, pela coligação PSB-PTB, de Mauro Borges. Preso no Maranhão em 1972, José Porfírio integra a lista dos desaparecidos políticos, um nó amargo que o país redemocratizado ainda não se mostrou capaz de desatar e superar, localizando e entregando às famílias os restos mortais desses brasileiros e esclarecendo a autoria detalhada de cada crime.

Frei Betto narra o que parece simbolicamente um milagre de Natal. Durante a celebração religiosa autorizada para os seis militantes e outros 400 presos comuns, Eny usou sua voz para falar do amor, levando às lágrimas a pequena multidão. Foi advogada, foi vestal, foi sacerdotisa e ainda cuidou de abraçar, um por um, todos aqueles cidadãos, que ela reconhecia intrinsecamente portadores da dignidade que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama desde 1948. Muitos deles submetidos ao regime carcerário cruel e degradante que ainda está presente no cenário brasileiro de 2022. Muitas vezes, pior hoje do que naqueles tempos terríveis.

A doçura triste dessa pregação no circuito fechado de uma prisão distante reaparece mais tarde, em altas doses de emoção, no relato sereno e pausado que Eny apresentou à Comissão da Verdade a respeito do corpo trucidado da jovem estudante de psicologia na USP, Aurora Maria do Nascimento Furtado, que a advogada conseguiu examinar, por descuido dos torturadores assassinos. Quem tiver força, deve ler esse relato, digitando como busca de internet os nomes de Eny e de Aurora.

Também dedicou esforços titânicos para tentar alguma informação, alguma nesga de pista sobre os restos mortais, um mínimo de reconhecimento do aparelho repressor pelo desaparecimento de Ísis Dias de Oliveira, que tinha sido esposa de nosso colega José Luiz Del Royo, mais tarde senador brasileiro em Roma.

Durante muitos anos, Eny foi a grande esperança de dona Felícia, mãe de Ísis, uma das heroínas que o Instituto Vladimir Herzog começou a resgatar em publicações sobre mulheres que dedicaram o restante de suas vidas à busca de justiça para a tortura e assassinato de seus filhos, filhas, irmãos e pais. Sem obter, sequer, como consolo, o direito sagrado a um funeral, que os povos bárbaros já permitiam aos inimigos em guerra.

Não se imagine, no entanto, que Eny fosse uma lutadora triste, acabrunhada ou embrutecida. O sorriso era uma das marcas maiores de seu rosto. No Carandiru, por mais de uma vez, deixou ruborizados os “perigosos terroristas” que defendia, contando piadas eróticas altamente impudicas. Era uma permanente explosão de vida e de contagiante alegria.

Quando a presidenta Dilma Roussef, em 2012, selecionava os sete integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que finalmente o Brasil teve coragem de aprovar, o nome de Eny foi dos mais sugeridos para a sua composição, ao lado do seu primeiro presidente, Paulo Sergio Pinheiro, e do próprio José Carlos Dias. Coube a mim informar a ela que não tinha sido possível incluí-la, para nossa tristeza e frustração. Eny respondeu, sem qualquer mágoa ou ressentimento, que estava feliz com a indicação de Rosa Maria Cardoso da Cunha. Sentiu-se inteiramente representada por ela, confirmando mais uma vez os seus raros dotes de generosidade e desprendimento.

Mas foi selecionada para integrar valorosamente a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, sob a presidência de Wadih Damous, impulsionando aquele coletivo a avançar inúmeras pautas, insistir em investigações travadas e tomar depoimentos de violadores com resultados absolutamente inéditos até então.

O trabalho hercúleo de quem seguirá nessa jornada em busca da verdade, memória e justiça, a saga de todas as pessoas que compuseram as comissões da verdade criadas a partir de 2012 – Comissão Nacional da Verdade, comissões estaduais, comissão da capital paulista, das universidades, das centrais sindicais, da UNE e da OAB – para levar adiante essa batalha, passa a ter na estrela batizada Eny um impulso inspirador que será inesgotável. Para não desistir. Para não cair em desalento. Para seguir na luta.

O que está em causa não é apenas a necessidade de investigar, reconhecer e processar toda a verdade das violações sistemática ocorridas num período tão recente. Mas, sobretudo, de construir no Brasil muros firmes de contenção para que nunca mais se repitam as torturas institucionalizadas ao longo de duas décadas. Mais ainda, erguer muralhas de contenção para que nunca mais ocorra entre nós o desastre civilizatório que representou a eleição, em 2018, de um presidente da República que defende a tortura e enaltece como herói o mais conhecido dos torturadores.

Paulo Vannuchi é membro fundador da Comissão Arns, jornalista, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos

(Artigo publicado originalmente no portal UOL)

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