Em maio de 2018, uma mobilização e greve de caminhoneiros sem precedentes paralisou o transporte de cargas em 24 estados brasileiros, além do Distrito Federal. Foram necessárias intervenções das Forças Armadas e das polícias rodoviárias estaduais e Federal para pôr fim ao movimento, que durou duas semanas.
Na época, foi suficiente para reduzir a expectativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2,5% para 1,6% naquele ano, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Desde então, o espectro de uma nova paralisação nacional de caminhoneiros ronda o Brasil.
Reivindicando principalmente a estabilização do preço dos combustíveis, lideranças anunciaram uma paralisação no último domingo (25).
O movimento, no entanto, não ganhou corpo, com exceção de mobilizações em pontos isolados, que não foram acompanhadas de bloqueios nas estradas.
A chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República parece ter aplacado os ânimos da categoria, que ainda vem demonstrando – com cada vez mais exceções – apoio ao governo federal.
O Brasil de Fato consultou uma especialista e o líder da paralisação mais recente para responder: quais as possibilidades de uma nova greve dos caminhoneiros?
Os caminhoneiros e o bolsonarismo
“É difícil prever se haverá uma nova greve, porque os caminhoneiros são uma categoria de trabalhadores que não opera como as outras. Eles não são organizados e sindicalizados, então, não há assembleias, não há lideranças específicas, não há reuniões”.
A avaliação é da historiadora, doutora em História Social e professora de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Larissa Jacheta.
Segundo a especialista, o cenário é fruto da predominância de um forte discurso antissindical, que rotula as organizações de trabalhadores e de esquerda como “pelegos, corruptos e encostados”, nas palavras da pesquisadora.
Larissa reconhece que o apoio da categoria a Bolsonaro age como um freio a novas mobilizações, mas prefere não rotular os quase 2 milhões de trabalhadores do transporte como “fascistas”. Ainda assim, ressalta: “Muitos deles ainda acreditam nesse projeto do Bolsonaro, ainda que seja um projeto mentiroso, uma falcatrua completa”.
Perspectivas
Para fazer uma análise mais acertada, diz a historiadora, deve-se prestar menos atenção ao discurso da categoria e mais ao seu poder inigualável de travar a circulação de mercadorias, em um país onde quase 70% dos bens são transportados por rodovias.
“Em 2018, eu acho que o campo progressista perdeu uma oportunidade muito grande. Era necessário que outras frentes de trabalhadores se unificassem a essa greve dos caminhoneiros, porque eles causam impacto material muito mais do que ideológico na sociedade”, opina.
Embora tenham obrigado o país a reconhecer sua importância em 2018, os caminhoneiros – sejam autônomos ou celetistas – ainda enfrentam os mesmos problemas: valor do frete defasado, oscilação do preço dos combustíveis e jornadas de trabalho estafantes.
Nem a tabela de fretes, criada pelo então Michel Temer (MDB) para aplacar a ira dos grevistas em 2018, foi capaz de garantir mais conforto aos profissionais.
“O preço mínimo dos fretes está sempre muito defasado, não acompanha adequadamente a inflação, o custo de vida, a alta dos preços. Então, isso causa uma perda em termos de ganho real, porque eles têm uma elevação do custo de produção muito grande”, explica.
“Acho que, nesse momento, uma mobilização como a de 2018 só vai acontecer quando e se esses trabalhadores se derem conta de que as questões deles estão acima dessa opção ideológica que fizeram”, finaliza a historiadora.
‘Sem politicagem’
O responsável pelo pontapé inicial da mobilização do último domingo é o Conselho Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas (CNTRC), criado em novembro de 2020.
Desde então, a entidade já foi recebida presencialmente por duas figuras do alto escalão bolsonarista para discutir a pauta dos caminhoneiros. Em março pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e em junho pelo presidente da Petrobras, general Joaquim Silva e Luna.
Plínio Dias, diretor-presidente da entidade, garante representar os interesses dos trabalhadores “sem politicagem”.
“Nós não estamos reivindicando nem ‘fora, Bolsonaro’, nem ‘Lula Livre’, como o pessoal está falando por aí. Nós não temos bandeira partidária, e sim a sobrevivência do setor de transporte do qual a gente faz parte. Somente isso, mais nada”, cravou.
Dias reconhece que a proliferação de entidades representativas dificulta a organização de uma greve nacional, mas critica as organizações maiores e mais consolidadas por não corresponderem aos anseios das bases.
Em 2018, Brasil viveu a maior greve de caminhoneiros da sua história / Agência Brasil
“Os caminhoneiros já estão cansados de esperar pela maioria das entidades responsáveis que se dizem lideranças de caminhoneiro. Então nós tomamos essa atitude. Estamos aí com poucas entidades [mobilizadas]. Tem uns três ou quatro sindicatos lutando pelo caminhoneiro autônomo. E o movimento está crescendo a cada dia”, avalia.
Segundo Dias, a mobilização em curso chegou a atingir 15 estados brasileiros. Com adesão reduzida, a opção da maioria foi por não obstruir as rodovias.
“A paralisação é pacífica. A reivindicação é a sobrevivência do setor de transportes e contra os aumentos abusivos da Petrobras do gás de cozinha, gasolina e principalmente diesel, que faz nossos caminhões rodarem”.
Oscilação nos preços
Em uma carta aberta ao presidente da República publicada no mês de sua fundação, a CNTRC apontou a Política de Preço de Paridade de Importação (PPI) como a principal responsável pelas mazelas vividas pela categoria.
Na prática, a PPI vincula os preços praticados no Brasil à cotação internacional do petróleo e ao dólar, provocando altas sucessivas dos combustíveis e do gás de cozinha, inviabilizando o planejamento de caminhoneiros autônomos, que muitas vezes acumulam prejuízo.
Considerada por especialistas como principal vilã não só dos condutores, mas de toda a economia nacional, a política de preços foi implementada por Pedro Parente, presidente da Petrobras na gestão de Michel Temer.
Catalisador da greve de 2018, o preço do diesel está 15% mais caro hoje do que na primeira semana de maio, às vésperas da paralisação nacional. Segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), os valores médios saltaram de R$ 3,94 para R$ 4,54.
“No caso de 2018, por exemplo, bem como agora, a maioria dos caminhoneiros – como a maioria da população brasileira – comprou um discurso enganoso de que as altas nos preços dos combustíveis e do gás de cozinha são um problema de impostos. E não são”, explica Larissa Jacheta.
Crise de representatividade
Acompanhando de perto o setor de transporte de cargas há 15 anos, o jornalista Almir Francisco, conhecido como Chico da Boleia, é apoiador da luta dos caminhoneiros, mas afirma que a convocação de greves que “morrem na praia” desgastam o movimento sem garantir conquistas trabalhistas.
“Não é simplesmente soltar uma convocação via WhatsApp e pronto. Certas pessoas sem a menor responsabilidade com setor ficam soltando chamamento de greve sem ter a liderança para isso, e colocando a ferramenta de luta e legítima que é a greve em descrédito”.
Para Chico da Boleia, a proliferação de sindicatos de condutores provoca uma crise de representatividade no setor. E lembra: “devidamente organizada, a categoria derruba presidente, como ocorreu no Chile em 1972. Os carreteiros chilenos pararam por 26 dias, dando início a uma série de manifestações pelo país que culminou com o golpe de Estado”, afirma, referindo-se à deposição do presidente Salvador Allende.
Fonte: Brasil de Fato