Circulou como piada um tweet que diz: “meu pai, bolsonarista, assistiu "Não Olhe para Cima" e entendeu que é um filme sobre a volta de Jesus. Eu desisto”. Isso é um exagero, mas o filme permite essa interpretação porque descontextualiza o tema.
Logo após sua estreia no Netflix, "Não Olhe para Cima" dominou os debates nas redes sociais. Para onde quer que se olhe, vemos o rosto cínico de Meryl Streep travestida de presidente dos Estados Unidos, ou o semblante assustado de Leonardo Di Caprio como um cientista ignorado na iminência de uma catástrofe.
É uma comédia que faz do escracho a denúncia do absurdo. A trama em torno da descoberta de um cometa que destruirá a vida na Terra se fecha nas relações entre cientistas desesperados, governo negligente e uma imprensa frívola.
Logo de cara o público entendeu a metáfora com a gestão caótica de governos negacionistas, como os de Donald Trump e Jair Bolsonaro, sobre a pandemia e decretou que o filme parodia pessoas como Átila Iamarino e Natália Pasternak, os cientistas, Bolsonaro, o presidente negacionista, e até mesmo Carlos Bolsonaro, representado pelo ator Jonah Hill no papel de Jason Orlean.
Isso é tudo muito espirituoso. É bom rir de um desgoverno que parece um show de horrores. Mas o fato de o filme aparentemente defender o nosso lado (o lado dos que não aguentam mais Trump, Bolsonaro e companhia) e de abordar questões atuais de forma dinâmica não deveria encobrir seus erros sobre a ferida em que pretende pôr o dedo.
Entendi que "Não Olhe para Cima" pode tanto ser uma caricatura da política em torno da pandemia, quanto do descaso com a degradação ambiental. Em ambos os casos é no mínimo estranho, mesmo em uma comédia, defender que a causa do problema é alheia às ações humanas
Pode-se dizer que a opção foi pinçar o negacionismo como forma de ridicularizar gestões grosseiras e descaradamente ineficientes. Mas mesmo o negacionismo não vem do nada. Também é semeado e cultivado. Os problemas que afligem a humanidade, supostamente parodiados no filme, surgiram e se desenvolveram cercados por diversas incertezas. Não de forma tão nítida e matemática como um cometa em um telescópio.
O cometa que ameaça a humanidade em forma de destruição e peste foi criado, grão a grão, por um sistema de fabricação e poluição em massa, um sistema que incentiva o consumismo desenfreado, que prega alienação e individualismo e, sobretudo, que geral desigualdade e miséria. Tais ameaças trazem com elas, de forma indissociável, a longa história que as moldaram.
Nas redes sociais eu li comentários que me levam a pensar que estou sendo ranheta ao querer aplicar algum rigor histórico em um produto da indústria cultural que serve, no fim das contas, para provocar riso ou, no máximo, um debate superficial. Pode ser. Mas é proveitoso não deixar escapar esse debate.
Além disso, seria ainda uma comédia se contemplasse de alguma forma o contexto da crise. Como, por exemplo, em A Vida de Brian (Terry Jones, 1979) e em Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009). Desta forma o filme seria mais politizado e não mera gozação da política.
Por Carolina Maria Ruy, Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical