Poucos dias atrás, o secretário de Administração de Camaçari, Helder Almeida, percebeu algo diferente enquanto circulava pela cidade. Estava vazia. Parecia feriado, mas era dia útil. Até comentou: “Será que já tem a ver com a Ford?”. Na semana anterior, a empresa havia anunciado o fim de suas atividades no Brasil, o que inclui a moderna fábrica de Camaçari, na região metropolitana, a 50 quilômetros de Salvador. Inaugurada pela Ford em Camaçari em 12 de outubro de 2001, foi a primeira montadora a se instalar no Nordeste, depois de quase ir para a região Sul.
O anúncio do fechamento foi feito na tarde do dia 11. Naquela segunda-feira, lá pelas 11 da manhã, o secretário recebeu um telefonema da área de relações institucionais da Ford, basicamente para adiantar o que seria comunicado horas depois. Surpresa total. Segundo Helder Almeida, não havia nenhuma indicação de que isso poderia acontecer. “Zero sinal”, afirma.
Boas festas
“Sempre tratei com a Ford a questão dos incentivos, e a gente estava iniciando uma conversa”, lembra o secretário, que está familiarizado com o tema. Quando deputado estadual, ele relatou o projeto dos incentivos, que levaram a montadora a Camaçari. No ano seguinte ao da instalação da fábrica, tornou-se prefeito. O atual chefe do Executivo, Antonio Elinaldo Araújo da Silva, é do DEM. Foi reeleito em 2020.
Em dezembro, Helder Almeida havia recebido outro telefonema da Ford, bem mais animador. Além dos habituais votos de boas festas, o representante da empresa comentou que precisavam retomar a conversa sobre a renovação dos incentivos. Por isso, a surpresa com a notícia foi ainda maior. Almeida lembra disso enquanto comenta a redução do movimento na cidade.
“É impactante, até no trânsito, entende? A gente sente a diferença. (Não tem mais) Carros, ônibus levando funcionários, carros de terceirizados… Na época em que a Ford veio pra cá, treinamos 15 mil pessoas junto com o Senai.”
População se multiplica
No início dos anos 1970, Camaçari (“árvore que chora”, em tupi-guarani, referência ao orvalho) era uma pacata cidade, com seus 42 quilômetros de orla, e boa parte da população em área rural. Em uma década, o número de habitantes cresceu em 168%, chegando a quase 90 mil em 1980. Dois anos antes, havia sido inaugurado o polo petroquímico, que começou a mudar o perfil da região. Do período de instalação da Ford até os dias atuais, a cidade não parou de crescer. Nos últimos 20 anos, a população se ampliou em 88% e superou os 300 mil. (Confira abaixo.)
“Veio muita gente de fora, do interior da Bahia. Teve muito paulista”, lembra Kleiton Alder, o Cabeça. Ele mesmo veio de fora. Vindo de Maceió, morava em Salvador quando apareceu a notícia de que uma montadora iria se instalar. O alagoano foi um dos milhares de interessados em uma vaga, que chegou em 2003, como montador, aos 19 anos. Antes, lembra o metalúrgico, trabalhava como instalador de telefones.
“A Ford abriu horizontes para o pessoal de Camaçari. Foi um marco”, diz Kleiton. “Todo mundo se estabeleceu. Pessoal comprou casa, carro, casou… A cidade mudou completamente, vieram empreendimentos, novos prédios.” Três atacadões chegaram à cidade, o que ele consideraria inimaginável antes, além de shopping center, escolas. Agora, segundo conta, o tom das conversas no dia a dia mudou. São, basicamente, dois assuntos: vacinação contra a covid-19 e Ford em Camaçari. “Muita gente falando em ir embora. É papo geral voltar para seus lugares de origem.”
Novos produtos
Da mesma forma que o secretário municipal, Kleiton, como diretor do Sindicato dos Metalúrgicos local, ficou absolutamente surpreso com a notícia. Afinal, em 2019, o sindicato e a Ford haviam fechado acordo que previa estabilidade por quatro anos e garantia da chegada de três novos produtos à fábrica. Por isso, os trabalhadores concordaram, inclusive, em reduzir o valor da participação nos lucros ou resultados (PLR).
“Para garantir esses produtos e a continuidade da planta, nós reduzimos”, afirma Kleiton. “Não tinha um sinal de que poderia fechar hoje ou amanhã.” A fábrica de Camaçari parou durante aproximadamente um mês no início da pandemia, até se ajustarem os protocolos. O turno da noite foi colocado em lay-off.
Busca de interessados
Dessa forma, a expectativa era de que o terceiro turno fosse retomado com a vinda de um novo modelo. Por isso, ao também receber telefonema no mesmo dia 11, os sindicalistas estavam até otimistas. “Nós pensávamos justamente que seria para falar sobre os novos produtos”, comenta Kleiton. Agora, o esforço é para conseguir interessados em “substituir” a Ford no polo de Camaçari, que de petroquímico passou a ser chamado de industrial.
O impacto será grande. Segundo Kleiton, há em torno de 8 mil trabalhadores no complexo Ford, com o “mesmo acordo coletivo, mesma PLR, mesmo salário”, sendo quase 5 mil funcionários diretos da montadora. Os metalúrgicos estimam em até 60 mil o número de atingidos na cadeia produtiva. Considerando as fábricas de Taubaté (SP) e Horizonte (CE), que também vão fechar, o Dieese calcula em pelo menos 120 mil o total de postos de trabalho eliminados.
Decisões estratégicas
Mas o estrago pode ser ainda maior. Durante ato virtual promovido na última quarta-feira (21) por deputados estaduais paulistas, o diretor técnico do Dieese, Fausto Augusto Júnior, falou em até 200 mil empregos que podem desaparecer. “Quando a gente pensa na cadeia, começa na siderúrgica e vai até os serviços. Estamos pensando no lavador de carro”, diz Fausto, apontando ainda perda anual de R$ 3 bilhões em impostos.
Ele questiona, por exemplo, a anunciada alegação de que a montadora irá concentrar sua produção em SUVs e picapes. Lembra que a fábrica de Camaçari justamente inaugurou esse segmento no Brasil, com o EcoSport. “A tomada de decisão não é simplesmente de nicho de negócio”, afirma.
Para o diretor, o “centro da discussão” está no acordo de livre comércio com o México, que poderá causar a saída de outras fábricas do Brasil, que aos poucos passaria de país produtor para importador. “Talvez fique só uma parte das alemãs e das japonesas. as outras empresas tendem a sair.” As decisões dos Estados chegam nas pessoas comuns – inclusive, alerta Fausto, “na tia que vende salgadinho na frente da Ford em Camaçari”. No caso específico da montadora, é preciso, pelo menos, cobrar (monetariamente) pelos impactos da saída.
Do cacau à indústria
A chegada da Ford a Camaçari foi uma espécie de coroamento na história da economia baiana, avalia Gustavo Casseb Pessoti, ex-presidente e atual vice do Conselho Regional de Economia (Corecon) do estado. Desde ciclos agrícolas, como o do cacau, que não se conseguiam se capitalizar e não avançaram para o desenvolvimento industrial, a atividade da Bahia cambaleou até os anos 1970, quando surgem os distritos industriais. Foi uma primeira tentativa de organização estrutural diante de problemas seculares. Ligados, de alguma maneira, à própria estrutura econômica brasileira.
Até que vem o polo petroquímico, em meados de 1978. “É o maior empreendimento da economia da Bahia no século 20, transbordando para o século 21”, diz Pessoti, também ex-diretor da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI) do estado. Camaçari, um “fazendão”, começa a se transformar em um dos principais polos industriais do país, mexendo com a própria região metropolitana de Salvador ao criar um entorno de serviços em volta da indústria. “Gradativamente, você muda a estrutura produtiva.”
Parque industrial
Esse ciclo começa de forma tardia em relação ao país. Nos anos 1960, lembra o atual coordenador de avaliação institucional da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), 40% do PIB estadual era agrícola – e, dessa faixa, 80% se concentrava no cacau. A Ford ajuda a desenvolver um parque industrial, com a instalação das chamadas sistemistas, empresas que atual dentro do próprio complexo. “Muito mais que uma montadora de veículos”, considera Pessoti, sem esconder a frustração.
Individualmente, a Ford não tem tanto peso no PIB da Bahia. Pouco mais que 0,3%, ou R$ 1,2 bilhão. Mas há o que o economista chama de “peso simbólico” da saída, uma sinalização ruim para investidores internacionais e uma perda que ele estima em R$ 5 bilhões ao ano, considerando toda a cadeia produtiva. É um baque, embora a montadora viesse perdendo força tanto na economia como nas vendas, algo que ele atribui a seguidos erros de gestão e de posicionamento em relação às mudanças ocorridas no mercado automobilístico.
Coelhos na cartola
Assim, nos últimos dias, o governo da Bahia se dedicou a fazer contato em busca de interessados. Foram várias conversas com executivos chineses e reuniões nas embaixadas de Coreia, Índia e Japão, em Brasília, das quais participaram o governador Rui Costa (PT) e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari, Júlio Bonfim. Terão êxito?
Gustavo Pessoti tenta ser otimista, mas vê um momento desfavorável. “É pouco provável que, alicerçada no mercado doméstico uma montadora volte a se instalar”, avalia. “Em qualquer lugar do Brasil”, ressalta o economista. “Acho que esses coelhos entraram na cartola e sumiram momentaneamente.”
Já o secretário Helder Almeida tem reservas em relação à vinda de nova empresa. Por “experiências ruins”, explica. Cita a Asia Motors (em cujo terreno a Ford acabou se instalando) e a JEC: “Fizeram uma cápsula do tempo, fizeram uma festa, e não veio”. Mesmo o anunciado interesse da Caoa é visto com cautela.
Ele conta, por exemplo, que anos atrás se reuniu com o dono da empresa, Carlos Alberto de Oliveira Andrade, e projetistas da Hyundai, para tratar da possível vinda de uma fábrica. “Coloquei todas as vantagens que você possa imaginar, mas acabaram indo para Goiás, muito tempo depois”, lembra. “Eu prefiro que o fato aconteça. A fábrica da Ford foi construída visando o processo produtivo deles, que era totalmente diferente do que existia. O sistema foi feito para isso. Será que os produtos dessas fábricas que estão sendo prospectadas servem?”
Adaptação e fé
Para ele, agora haverá um período de adaptação. O município vai reformular seus incentivos, abrindo mão de carga tributária, em busca de empresas, inclusive de outros setores. “É o novo normal da indústria de Camaçari. Vamos remar. Vamos perder uma massa salarial grande. A maioria dos funcionários da Ford é de Camaçari ou mora aqui.” A perda em ISS é estimada em R$ 30 milhões/ano e a ICMS, em R$ 100 milhões, a partir de 2023.
Entre os trabalhadores, tristeza, desolação e insegurança. Na quinta (21), o sindicato convidou representantes de diversas religiões para realizar um ato ecumênico diante da fábrica, “para fortalecer a fé dos metalúrgicos neste momento tão delicado”.
Fonte: Rede Brasil de Fato